terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Análise 40 - O Noviço


Considerado o criador do teatro de costumes no Brasil, Martins Pena retratou a sociedade de sua época, criando personagens que simbolizam diferentes tipos sociais – dos senhores feudais aos escravos.

"Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história brasileira dos primeiros cinquenta anos deste século XIX, que está a findar, e nos ficassem somente as comédias de Pena, era possível reconstituir por elas a fisionomia moral de toda essa época."

Martins Pena
Esta análise, feita no final do século passado pelo crítico literário Sílvio Romero sobre as comédias de Luís Carlos Martins Pena, resume a importância adquirida pela dramaturgia desse autor no panorama da literatura brasileira. Considerado por muitos estudiosos o "pai do teatro de costumes no Brasil", Martins Pena criou personagens que – apesar de não terem grande densidade psicológica – simbolizam diferentes tipos sociais de nosso país. Estão presentes em seus textos desde os nobres representantes da Corte, no alto da camada social, até os escravos, na base da pirâmide, passando também por funcionários públicos, empregados em diferentes tipos de empresas, sacristãos, soldados, artesãos etc.

A crítica dos costumes

Mostrando por meio do humor e da sátira as condutas e os costumes "censuráveis" da população, o autor traça um amplo retrato do Brasil da primeira metade do século XIX. Observador astuto de sua época e crítico mordaz, Martins Pena expõe a desorganização e a corrupção nos serviços públicos, o contrabando de escravos, a exploração do sentimento religioso, os comerciantes que enganam seus clientes, os casamentos sob encomenda ou homens que se casam apenas por interesse financeiro. 


Para lembrar
Martins Pena é o precursor de um gênero de teatro, a chamada comédia de costumes. Por meio do humor e da sátira, constrói um retrato da sociedade brasileira. Seus personagens representam tipos sociais, em geral, vistos sob seus piores aspectos.

O Noviço, de Martins Pena, numa montagem do Grupo Tapa, São Paulo.
Quase todas as comédias de Martins Pena possuem alguns traços em comum. O autor costuma mostrar as tradições e os costumes populares, como as festas do Espírito Santo, a "malhação" do Judas, os festejos de São João. E há uma série de situações que se repetem ao longo de suas peças: as intrigas domésticas, os caçadores de dotes, os casamentos por interesse, as diferenças entre o universo dos moradores da roça e da cidade. 


Pré-Realismo


Cronologicamente, Martins Pena pertence ao Romantismo, movimento literário do início do século XIX, cujas características são o individualismo, o lirismo e o predomínio da sensibilidade e da imaginação sobre a razão. Suas peças, escritas entre 1833 e 1846, trazem várias marcas dessa escola. É comum, por exemplo, encontrar personagens driblando todas as adversidades para ficar junto da pessoa amada. Afinal, um bom casamento era, naqueles tempos, uma das principais preocupações dos jovens. Seus textos, porém, antecipam algumas características do Realismo, movimento literário surgido em meados do século XIX. 


Para lembrar
O Realismo opõe-se ao lirismo e à imaginação dos autores românticos. Nas peças de Martins Pena, isso aparece em alguns personagens, como moças que não se envergonham quando se encontram diante dos amados ou jovens que se rebelam contra as decisões autoritárias dos pais – situações que não se encaixam no perfil do Romantismo. 

Um noviço no Rio de Janeiro

O Noviço é uma comédia em três atos escrita em 1845, mas publicada somente em 1853. A história se passa no Rio de Janeiro e mostra tanto cenas de cultura popular como as intrigas da sociedade. A trama desenrola-se a partir da ação de Ambrósio, um homem pobre, ambicioso e sem escrúpulos que se casa com Florência, uma viúva rica, mãe de dois filhos, Emília e Juca, e tutora de Carlos, seu sobrinho órfão – o noviço da peça. 

Ingênua e facilmente manipulada pelo marido, Florência acredita que Ambrósio se casou com ela por amor e não desconfia que, na verdade, ele está interessado apenas em seu dinheiro. 

Um enredo de intrigas

O Noviço é construído com uma cadeia de intrigas na qual nem mesmo os personagens de melhor caráter hesitam em lançar mão da chantagem e outros subterfúgios pouco éticos. 

• Ambrósio percebe que Emília se encontra em idade de se casar e, se isso ocorrer, Florência terá de dar ao noivo um dote, algo que lhe desagrada profundamente. Então, convence a mulher de que a moça deveria ser colocada em um convento e, para evitar que surjam outros problemas com sua tão cobiçada herança, persuade a mulher a também colocar Juca, o outro filho, no convento para se tornar frade. 

• Para atrapalhar a tranquilidade de Ambrósio, surge Carlos, interno a contragosto há seis meses no convento da Ordem de São Bento. O grande desejo do noviço é ser militar e casar-se com Emília, que também é apaixonada por ele. A jovem também não se conforma com a decisão de ter que se tornar freira. Após dar uma cabeçada que fez desmaiar o abade de seu convento, Carlos foge e se esconde na casa de Emília. Ao descobrir que o padrasto da moça convenceu Florência a colocar os filhos dela no convento, começa a desconfiar da honestidade de Ambrósio. 

• As coisas para Ambrósio se complicam ainda mais quando aparece na casa de Florência a cearense Rosa, primeira mulher de Ambrósio. Pensando ser Carlos um padre, ela lhe conta estar há seis anos à procura do marido que desaparecera com todo o dinheiro que possuía. Informada de que Ambrósio estaria no Rio de Janeiro, dirigiu-se à cidade, localizou a casa na qual ele morava e foi procurá-lo, querendo saber se era verdadeira a informação de que ele se casara novamente. 

• Carlos obtém um trunfo contra Ambrósio, mas ainda tem um problema a superar: o mestre dos noviços está em seu encalço, querendo reconduzi-lo ao convento. Então, mente a Rosa dizendo que Ambrósio chamou a polícia para prendê-la. Troca de roupa com ela que, ao ser encontrada de batina, é levada à força ao convento. 

• Carlos começa a chantagear Ambrósio. Exige que ele convença sua tia a retirá-lo do convento, autorize seu casamento com Emília e receba o dote a que tem direito. Com medo de ser desmascarado, o bígamo golpista concorda com as exigências.

O enredo ainda apresenta mais confusões, mantendo o ritmo da comédia com várias cenas engraçadas até o final feliz para Carlos e Emília. 

O Noviço, codireção de Brian Penido e montagem do Grupo Tapa.


Anote!
Temos o mestre dos noviços, que captura Rosa por engano; temos Ambrósio, mentindo para toda a família; e até mesmo Carlos, que para desmascarar Ambrósio engana Rosa. Nem os religiosos escapam, pois, à noite, eles vestem casaca e se disfarçam com uma peruca, fingindo-se de leigos, para frequentar o teatro, o que lhes é proibido.

Assim como em toda a sua obra, Martins Pena tece uma série de críticas à sociedade brasileira em O Noviço. A corrupção, a impunidade, o tratamento desigual por parte da Justiça em relação a pobres e ricos, por exemplo, não escapam à atenção do autor que, logo no início da peça, faz Ambrósio comentar: 

"No mundo, a fortuna é para quem sabe adquiri-la. [...] Vontade forte, perseverança e pertinácia são poderosos auxiliares [...] Há oito anos, eu era pobre e miserável, e hoje sou rico, e mais ainda serei. O como não importa; no bom resultado está o mérito... 

Se em algum tempo tiver de responder pelos meus atos, o ouro justificar-me-á e serei limpo de culpa. As leis criminais fizeram-se para os pobres [...]".

As críticas à religião e à burocracia religiosa também estão presentes nas falas do noviço Carlos: 


"Não nasci para frade, não tenho jeito nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar com os braços encruzados. Não me vai o gosto para aí... Não posso jejuar: tenho, pelo menos, três vezes ao dia, uma fome de todos os diabos. [...] Gosto de teatro, e de lá ninguém vai ao teatro, à exceção de Frei Maurício, que frequenta a plateia de casaca e cabeleira, para esconder a coroa."

Para lembrar
Martins Pena viveu em uma época na qual a Igreja Católica estava ligada ao Estado e dava-se grande importância às exterioridades do culto. Suas críticas aos religiosos e, indiretamente, à Igreja revelam uma grande coragem, ousadia e muita irreverência.

O agudo senso de observação de Martins Pena muitas vezes resulta em um amargo quadro da sociedade brasileira da primeira metade do século XIX.
O personagem Carlos, obrigado a seguir uma carreira que não deseja, é um instrumento para o autor fazer um discurso libertário cheio de críticas sutis às instituições:

"Eis aí porque vemos entre nós tantos absurdos e disparates. Este tem jeito para sapateiro: pois vá estudar medicina... Excelente médico! Aquele tem inclinação para cômico: pois não senhor, será político... Ora, ainda isso vá. Estoutro só tem jeito para caiador ou borrador: nada, é ofício que não presta... Seja diplomata, que borra tudo quanto faz. Aqueloutro chama-lhe toda a propensão para a ladroeira; manda o bom senso que se corrija o sujeitinho, mas isso não se faz: seja tesoureiro de repartição, fiscal, e lá se vão os cofres da nação à garra... Essoutro tem uma grande carga de preguiça e indolência e só serviria para leigo de convento, no entanto vemos o bom do mandrião empregado público, comendo com as mãos encruzadas sobre a pança o pingue ordenado da nação [...]".

Martins Pena também se aproveita das falas de Carlos para retratar a situação dos intelectuais na sociedade brasileira, quase sempre pendurado em empregos burocráticos, em geral, nas repartições públicas:

"Este nasceu para poeta ou escritor, com uma imaginação fogosa e independente, capaz de grandes cousas, mas não pode seguir a sua inclinação, porque poetas e escritores morrem de miséria no Brasil... E assim [o] obriga a necessidade a ser o mais somenos amanuense em uma repartição pública e a copiar cinco horas por dia os mais soníferos papéis. O que acontece? Em breve matam-lhe a inteligência e fazem do homem pensante máquina estúpida, e assim se gasta uma vida!"

Apesar de traçar um painel pessimista da realidade, Martins Pena não deixa de mostrar esperanças:

"O respeito e a modéstia prendem muitas línguas, mas lá vem um dia que a voz da razão se faz ouvir, e tanto mais forte quanto mais comprimida [...] Que não se constranja ninguém, que se estudem os homens e que haja uma bem entendida e esclarecida proteção, e que, sobretudo, se despreze o patronato, que assenta o jumento nas bancas das academias e amarra o homem de talento à manjedoura."

Para o autor, entretanto, as injustiças, a corrupção e as desigualdades só serão corrigidas quando os mais fracos se unirem e, juntos, lutarem contra os poderosos. Essa união está simbolizada no acordo que Florência e Rosa fazem para se vingarem de Ambrósio:

"ROSA – E nós, suas desgraçadas vítimas, nos odiaremos mutuamente, em vez de ligarmo-nos, para de comum acordo perseguirmos o traidor? 

FLORÊNCIA – Senhora, nem eu, nem vós temos culpa do que se tem passado. Quisera viver longe de vós; vossa presença aviva meus desgostos, porém farei um esforço – aceito o vosso oferecimento – unamo-nos e mostraremos ao monstro o que podem duas fracas mulheres quando se querem vingar.

Anote!
Martins Pena fez do palco um espelho do Brasil. Suas comédias, escritas poucos anos depois da proclamação da Independência, significam uma tomada de consciência da realidade brasileira, uma maneira de se tentar pensar criticamente sobre nossa cultura.

Com isso, a tradição da comédia de costumes acabou sendo incorporada em nosso teatro, que seria continuada, nos anos seguintes, por autores como Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Artur Azevedo, Viriato Correia, Oduvaldo Vianna e tantos outros. Como escreveu o crítico José Veríssimo a respeito de Martins Pena, "poder-se-ia dizer, com alguma razão, que o teatro brasileiro estava, se não fundado, começado". 

Vida e obra








Anote!
Além de ser o grande precursor da comédia de costumes, Martins Pena também é considerado um dos pioneiros do teatro no Brasil. 

Um marco no teatro brasileiro






Fonte: http://vestibular.uol.com.br

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