segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 33 - Auto da Barca do Inferno


Reconhecido como o maior dramaturgo português, Gil Vicente reúne neste Auto – uma de suas obras-primas – a crítica ferina, o divertimento e um espírito reformador baseado no respeito às instituições.

Publicado em 1517, ao que tudo indica pelo próprio autor, o Auto da Barca do Inferno foi impresso em folheto avulso (chamado "cordel"). Voltou a aparecer em 1562, na edição da Compilaçam, feita por seu filho Luís Vicente. Foi encenada pela primeira vez na câmara da rainha D. Maria de Castela, na presença do rei D. Manuel I e de sua irmã D. Leonor, a Rainha Velha. Assim como o Monólogo do Vaqueiro, o Auto também deliciou o casal real e seus parentes nobres. 

Uma alegoria do juízo final 

Definido pelo próprio Gil Vicente como um "auto de moralidade", o Auto da Barca do Inferno tem como cenário fixo duas embarcações, num porto imaginário para onde vão as almas no instante da morte. Cada barca possui um comandante – a do Paraíso, um Anjo; a do Inferno, um Diabo, que conta com um Companheiro. A ação da peça desenvolve-se a partir da chegada dos personagens, que um a um desfilarão por esse porto, procurando encontrar a passagem para a vida eterna. 

Serão julgados pelo que fizeram em vida. O Diabo e o Anjo acusam, mas só o Anjo pode absolver. Em seguida, são encaminhados a uma das barcas.

Para lembrar
Toda essa composição cênica – rio, porto, barcas, Anjo, Diabo –, que concretiza o espaço intermediário entre a vida terrena e a vida eterna, representa a "moldura simbólica" do Auto. Ilustra a obra de Gil Vicente e sua divisão em teatro de costumes e de religiosidade alegórica.


O Auto da Barca do Inferno é uma expressão do Humanismo gótico – um teatro poético, com versos redondilhos, rimas, símbolos, metáforas e agudezas. Os personagens são tipos sociais – a nobreza, o clero e o povo. 

Quando a peça começa, estão no palco o Anjo e o Diabo com seu Companheiro. A primeira cena mostra estes últimos eufóricos na preparação do navio infernal que receberá as almas. Eles sabem que serão muitas. Em oposição a esse quadro dinâmico está a figura do Anjo, sério e calado, quase uma estátua. As diferenças entre esses dois personagens são marcantes. Além da oposição conceitual Bem x Mal, Céu x Inferno, eles também assumem posturas opostas, fazendo com que o Diabo – alegre, simpático e principalmente irônico – praticamente domine a peça.

As figuras do Auto 

O Fidalgo prepotente veste-se com apuro e vem acompanhado de um pajem que lhe carrega uma cadeira de encosto alto. Os personagens, em sua maioria, trazem consigo referências do que foram quando vivos. No caso do Fidalgo, a cadeira de encosto, o pajem e a rica indumentária formam um conjunto de símbolos que indicam sua alta posição social. Mas, nesse porto, a noção de hierarquia social dilui-se. Ali, o julgamento é moral. O Diabo, que é sempre o primeiro a receber as almas, convida dom Anrique, o Fidalgo, a embarcar. Entretanto, ao saber o destino do batel, o nobre zomba do convite.

Para lembrar
Mesmo depois da morte, o Fidalgo demonstra a arrogância prepotente típica da classe a que pertence. Além do mais, julga-se merecedor da recompensa divina, pois deixou na vida quem rezasse por ele.


Embora típico, o Fidalgo apresenta uma certa humanidade. Quando rejeitado pelo Anjo, se mostra arrependido por sua existência vazia: "folgava ser adorado; / confiei em meu estado / e nom vi que me perdia". 


Anote!
A sentença desse personagem é a condenação da frivolidade, da soberba e da tirania.


O Onzeneiro ambicioso

É o agiota que traz consigo uma enorme bolsa vazia, onde guardava o dinheiro que roubava das pessoas quando vivo. O Diabo o cumprimenta esfuziante e o trata por "meu parente". 

O Onzeneiro queixa-se por estar sem dinheiro. O Diabo indica-lhe a barca infernal. Mas o agiota, ao saber do destino da embarcação, recusa-se a entrar, indo em direção ao batel da Glória. O Anjo despede-o, acusando-o pelo exercício da onzena: "Ó onzena, como és feia / e filha da maldição".


Anote!
A sentença do Onzeneiro é a condenação da usura, da ganância e da avareza.


O ingênuo Joane

Quando chega ao cais, o Parvo é por instantes iludido pelo Diabo, que o quer embarcar. Quando é informado do rumo do batel, porém, Joane desata um grosso e engraçado xingamento ao Diabo, recheado de pragas e palavrões: 

"Hiu! hiu! Lanço-te uma pulha
de pica naquela!
Hump! hump! caga na vela!
Hiu! cabeça de grulha!
Perna de cigarra velha,
caganita de coelha,
pelourinho de Pampulha,
mija n'agulha! Mija n'agulha!"


Anote!
A sentença do Parvo Joane é a glorificação da modéstia e da humildade.


O Sapateiro ladrão

O Sapateiro entra carregado de pesadas formas, instrumentos de trabalho que o identificam. Ao saber do destino do batel infernal, pergunta ao Diabo onde está a barca dos que morreram confessados e comungados. Entretanto, o Arrais do Inferno lembra-o de que, por 30 anos, roubara o povo com seu ofício. O remendão ainda recorre ao Anjo, mas sem sucesso. 


Anote!
A sentença do Sapateiro é a condenação da má-fé no comércio e da hipocrisia religiosa.


O Frade namorador

Este personagem traz consigo a namorada Florença. Suas roupas são ambíguas. Além das vestes sacerdotais, o Frade apresenta-se com instrumentos próprios para a prática da esgrima. Além de mostrar-se hábil nesse esporte, ainda se revela conhecedor da arte da dança e do canto populares. O Diabo, muito alegre, recebe o casal com graça e convida-o a embarcar. O Frade espanta-se. Como ele, um religioso, poderá ser condenado? Sempre ao lado de sua namorada, o padre recorre ao Anjo. Mas este, num silêncio reprovador, sequer lhe esboça uma palavra. Muito apegado aos prazeres do mundo, o Frade demonstra em cena uma preocupação verdadeira com a namorada Florença. Essa postura mais humana o aproxima, como personagem, do Fidalgo. 

Anote!
Os símbolos do Frade são a namorada e os instrumentos de esgrima. E sua sentença é a condenação do falso moralismo religioso.

A Alcoviteira



Ela chega ao cais e se recusa a entrar na barca do Diabo. Declara possuir joias e apetrechos usados em feitiçaria. Contudo, seu maior bem são "seiscentos virgos postiços". O correspondente atual mais próximo do arcaico "virgo" é o hímen. Com isso, a fala da Alcoviteira revela que ela prostituíra 600 meninas virgens. Mas o adjetivo "postiços" pode estar significando que as moças arranjadas por Brísida Vaz não eram virgens. Misto de cafetina e feiticeira, a Alcoviteira aproxima-se do Anjo e procura convencê-lo a embarcá-la com um discurso sedutor, próprio da arte amatória que tão bem conhecia na prática da prostituição. Mas é o Diabo quem a recebe com gentileza, pois lhe encanta muito a sordidez deste personagem. 


Anote!
A sentença da Alcoviteira Brísida Vaz é a condenação da feitiçaria e da prostituição em si, mas principalmente como símbolos de uma atuação perniciosa destituída de qualquer sentido.

O Judeu rejeitado



Aproxima-se do batel infernal carregando um bode às costas. O bode é a insígnia do judaísmo. O Diabo, que até então estava sedento de almas, atende com má vontade o Judeu. Este, por sua vez, ao conhecer o rumo da nau, quer embarcar. Mas é rejeitado pelo Diabo sob pretexto de não aceitar o bode em sua barca. O Judeu tenta suborná-lo, pois não pode se separar do animal. Pede, sem resultado, a intervenção do Fidalgo, com quem tinha negócios. O comandante infernal sugere ao Judeu a outra barca, mas Joane o impede de se aproximar do Anjo, recriminando-o por haver desrespeitado a religião católica. Por alguns instantes, o personagem é condenado a vagar sem destino pelo cais das almas. No final, o Diabo permite que o Judeu e o bode sigam numa embarcação a reboque da sua.


Para lembrar 
A passagem do Judeu (de difícil interpretação) indica, em princípio, a marca do preconceito religioso. Gil Vicente, ao longo de sua obra, mostrou-se dividido frente aos judeus. Ora os defende, ora os ataca. Sabe-se, contudo, que o dramaturgo português defendeu publicamente 
os cristãos-novos, em um período de franca perseguição religiosa.

O Corregedor guloso



Equivalente aos juízes atuais, o Corregedor entra carregado de autos (processos), que o caracterizam. Convocado pelo Diabo para fazer parte da barca dos danados, surpreende-se e, para argumentar em defesa própria, utiliza-se de um precário latim forense que se mistura ao português. Ao deturpar o latim, língua dos clérigos e dos advogados, na boca do Corregedor, Gil Vicente consegue, além do efeito de humor, demonstrar a inconsistência da formação dos homens de lei de seu tempo. Em meio à conversação, chega ao porto o Procurador (advogado do Estado), reconhecido pelo Corregedor, já que no mundo trabalharam juntos.

O Procurador corrupto



Carregando livros (símbolos), o Procurador é convidado pelo comandante infernal a entrar na barca dos perdidos. Tal como o Corregedor, o Procurador nega-se a embarcar. Os dois doutores conversam sobre os crimes que cometeram e juntos dirigem-se ao batel do Paraíso. O Anjo não os recebe e maldiz a ação dos burocratas. O Parvo Joane também intervém, em latim atrapalhado, para acusar os bacharéis. Os dois homens de lei vão fazer companhia a Brísida Vaz, que em vida estivera constantemente respondendo a processos judiciais. 


Anote!
A sentença do Corregedor e do Procurador é a condenação da burocracia corrupta e do uso do poder em proveito próprio pelos bacharéis da Justiça.

O Enforcado testa de ferro



O escrivão Pero de Lisboa aproxima-se do batel dosmal-aventurados. Traz ainda no pescoço a corda com a qual se enforcou, acreditando que assim teria a redenção de todos os crimes que cometera. O Diabo desilude-o. Ao que tudo indica, o escrivão era uma espécie de "testa de ferro", pois praticara crimes, no exercício da profissão, sob o comando de seu chefe Garcia Moniz, poupando-lhe o nome e repassando-lhe os lucros. 


Anote!
O Enforcado recoloca em cena a crítica da burocracia corrupta, já explorada nas passagens do Corregedor e do Procurador.

Os Quatro Cavaleiros de Cristo



Trazem armas e uma cruz, símbolos do Cristianismo. São Cavaleiros que morreram nas Cruzadas. Ao passar pelo batel dos danados, são interpelados pelo Diabo, que os requer: "Entrai cá! Que cousa é essa? / Eu não posso entender isto!". Ao que responde um Cavaleiro: "Quem morre por Jesus Cristo / não vai em tal barca como essa!". Os Quatro Cavaleiros são recebidos pelo Anjo em seu batel e assim termina a peça.


Anote!
A sentença dos Quatro Cavaleiros é a glorificação do ideal das Cruzadas e do espírito do Cristianismo puro.

Vida e obra - Um crítico atento e mordaz


Corre o ano da graça de 1502 em Lisboa. É noite de 7 de junho. Todo o palácio real respira leve apreensão. D. Maria de Castela, excelsa esposa do rei D. Manuel I, descansa dos trabalhos de parto do dia anterior, quando deu à luz um menino. [...] 

Quem pode se aglomera à entrada do régio aposento e saúda com olhares sorridentes o mais novo príncipe de Portugal.

Súbito, um burburinho quebra a atmosfera desse ambiente. É mestre Gil, ourives da Corte, que vem em vestimentas de vaqueiro e acompanhado de um zagal. Impaciente, ele pede licença aos que ali estão para se aproximar da rainha. [...]

A rainha soergue-se do leito. Alguém a informa de que é mestre Gil e que deseja homenagear o recém-nascido. Com o consentimento prévio, o vaqueiro e seu mudo companheiro dirigem-se, sob olhares pasmados, ao centro da alcova real. 

Lá, em vez de uma gentil cortesia, ou mesmo de um simples boa-noite, uma avalanche de protestos. Para chegar até ali, o rústico diz ter sido agredido pela guarda, ter dado um soco em um dos "figurões" e que, se soubesse dessas todas dificuldades, não teria vindo. E se viesse não teria entrado. E se entrasse... É uma representação. [...]

O discurso do vaqueiro aos poucos desdobra-se em tom de louvor ao "excelente príncipe". E, ao fim, com uma irônica referência à truculência da guarda real, a grande surpresa: o rude camponês faz que entrem outros "porcariços" e "vaqueiros" que trazem consigo mimos ao príncipe recém-chegado. 
A aprovação é geral. A tal ponto que D. Leonor (viúva de D. João II), a mais entusiasmada, pede ao mestre que repita a apresentação quando dos próximos festejos natalícios.

A passagem anterior mostra, resumidamente, a barulhenta estreia do dramaturgo Gil Vicente. Essa entrada em cena para representar o Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação, sua primeira peça, é exemplo de sua personalidade artística bombástica e corrosiva, que prefere o protesto à cordialidade. Mesmo assim, Gil Vicente foi um sucesso em sua época. 


Para lembrar
O dramaturgo soube aliar em suas obras o divertimento e o espírito reformador apoiado no respeito às instituições, além de um alto padrão estético.

O preferido dos reis



Não se sabe exatamente quando ou onde Gil Vicente nasceu. Os poucos indícios históricos registram seu nascimento entre 1465 e 1470, possivelmente em Guimarães. Uma cidade rica em artistas e artesãos, onde provavelmente aprendeu o ofício de ourives, que praticou nas Cortes de D. Manuel I (1469-1521) e de D. João III (1502-1557). 

Gil Vicente viveu a maior parte de sua vida em Lisboa, centro comercial e cultural de Portugal. De origem popular, não se sabe onde adquiriu a vasta e diferenciada cultura que marcou sua obra. Todas ou quase todas as afirmações biográficas a respeito do dramaturgo são suposições. Graças a isso, costuma-se dividir essa figura histórica 
em dois:


• O Gil Vicente ourives ou de atividades semelhantes.
• O Gil Vicente poeta, dramaturgo e encarregado da preparação das festas palacianas.

Há dúvidas inclusive se ambos seriam os mesmos, pois torna-se difícil juntar as duas personalidades. No entanto, é o Gil Vicente poeta e dramaturgo que aqui interessa. Aquele que desenvolveu em Portugal um teatro até hoje incomparável em sua grandeza.


Vida e obra - Uma produção intensa e original


A obra de Gil Vicente não seguiu nenhum padrão determinado. Não há sinal de que conhecesse o drama grego e não há registro histórico de teatro pré-vicentino em Portugal. Além de uma rudimentar ação dramática que floresceu na Europa, durante a Idade Média, o espanhol Juan del Encina (1468-1529) foi quem primeiro compôs peças de caráter pastoril e religioso na península Ibérica. Gil Vicente é, portanto, o criador do teatro em Portugal.


Para lembrar
Sua produção foi iniciada em 1502 com o Monólogo do Vaqueiro, ou Auto da Visitação, e termina em 1536, com Floresta de Enganos, num total de 34 anos de intensa produtividade e 46 peças, sendo uma em castelhano, 16 bilíngues e as restantes em português.


Esse conjunto foi reunido e editado por seu filho, Luís Vicente, em 1562, no volume intitulado Compilaçam de Toda las Obras de Gil Vicente. Um trabalho que, infelizmente, não teve o rigor necessário, pois apresentou alterações nos textos e omissão de peças. Ignora-se também a data da morte de Gil Vicente, sabendo-se apenas que aconteceu entre 1536, ano em que foi representada sua última peça, e abril de 1540, data de um documento no qual aparece a seguinte frase: "Gil Vicente, que Deus perdoe". 

Uma época de transformações


O período histórico em que vivia Gil Vicente é chamado de Humanismo, ou Segunda Época Medieval, ou ainda, Primeiro Renascimento. Um período que se iniciou em 1418, quando Fernão Lopes (cronista, considerado o pai da História portuguesa) é nomeado, pelo rei D. Duarte, Guarda-Mor da Torre do Tombo (o mais importante arquivo histórico de Portugal). 

O Humanismo terminou em 1527, quando o poeta e dramaturgo Sá de Miranda (1481-1558) retorna da Itália, trazendo consigo novidades estéticas que mudariam em parte os rumos da Literatura portuguesa.


Para lembrar
Esses acontecimentos históricos ganham importância dentro de um contexto mais amplo.

O surgimento de um artista como Fernão Lopes, independente e dono de uma nova mentalidade, é ilustrativo de um tempo em que Portugal vivia transformações profundas.


No século XV, o país estava ingressando na modernidade mercantil e expansionista e, consequentemente, abandonando o mundo medieval. Era a época das grandes navegações, descobertas, invenções. No interior dos palácios, ainda persistia uma nobreza tradicional, de estrutura feudal, mas em decadência.

Nas ruas, porém, fervia a agitação do comércio, de onde se originou uma nova classe social, a burguesia, e uma nova ideologia das relações humanas centrada no lucro e no saber. 

Em História Social da Literatura Portuguesa, Benjamim Abdala Júnior e Maria Aparecida Paschoalin descrevem assim essa ideologia emergente: 


"Há a consciência de que é necessário o saber. É através do conhecimento que o homem e a vida se transformam. O mercador de tecidos estabelecido no Porto ou em Lisboa, além de ler e escrever, aprende a contar. A extensão de seus negócios acarreta maiores conhecimentos geográficos. Conhecedor do seu ramo, entende de tecelagem, tinturaria, decoração de panos. Conhece o mercado: entende de oferta e procura; sabe do transporte, do que o país pode fabricar, dos recursos e do poder de compra das províncias. Seu saber não é local (como era para o servo), é nacional. A noção de destino fadado por forças ocultas começa a ser substituída pela noção prática do lucro: com mais lucro ou menos, a vida é melhor ou pior. A cultura amplia-se".


Há uma imensa crença no homem. Tal conceito projeta-se na retomada dos estudos clássicos (grego, latim) e da arte clássica, nos quais as noções de homem e Deus confundem-se. 


Para lembrar
Tudo isso acontece em Lisboa, que à época da primeira encenação do Auto da Barca do Inferno, em 1517, é a maior cidade da península Ibérica e uma das maiores da Europa (cerca de 60 mil habitantes). Tudo isso em Portugal, que então controlava colônias na África, América, Ásia e em ilhas espalhadas pelo Atlântico, Índico e Pacífico.


O Humanismo é o reflexo desse mundo em transição. Comercial e feudal. Burguês e nobre. Técnico e místico. Inclinado ao progresso, mas com raízes ainda medievais.


Vida e obra - Características do teatro vicentino


Rico e variado, o teatro de Gil Vicente compõe um painel da época e do mundo em que viveu o autor. 

Um teatro popular



A primeira noção de popular percebe-se nos temas e na linguagem. O teatrólogo não conhecia o teatro grego. Foram os gregos que inventaram o teatro clássico. Suas peças possuíam unidades estruturais. Unidade de tempo: o drama passa-se num período de um dia na vida dos personagens. Unidade de espaço: há apenas um espaço para o desenrolar da trama. Unidade de ação: a narrativa apresenta uma sequência lógica, com começo, meio e fim. 

A segunda noção de popular no teatro vicentino dá-se com a quebra dessas unidades. Gil Vicente faz isso ao longo de sua produção, sem ter a consciência de tal procedimento. No Auto daBarca do Inferno, por exemplo, há um desvio no conceito de unidade de ação, pois trata-se de uma narrativa descontínua, onde cada personagem traz sua própria história, que pode ser vista isoladamente.


Um teatro crítico e ao mesmo tempo satírico e moralizante


Essa é uma das características mais complexas e vitais do teatro vicentino. Gil Vicente não se curvou ao seu tempo. Foi crítico mordaz. Bombardeou praticamente todos os setores da sociedade, apenas poupando as abstratas noções de instituição. Ou seja, criticou a hipocrisia do clero em nome da fé cristã. Desbancou a tirania da nobreza em nome da justiça social. Condenou a corrupção dos burocratas em defesa do bem público. Nunca deixou de ser contundente e realista.
O dramaturgo, porém, foi um privilegiado. Pôde desenvolver seu veio artístico com bastante liberdade, sem se preocupar com a sobrevivência diária. Viveu com certa tranquilidade, protegido e incentivado sob regime de mecenato pelas Cortes de dois reis de Portugal. E isso, graças principalmente às riquezas que o país e o teatrólogo viam chegar de terras estrangeiras, quase diariamente. Mesmo assim, ele não deixou de criticar a sociedade de seu tempo. Isto porque tinha a convicção de que uma das funções sociais da literatura é a problematização da realidade.

Um teatro poético

A linguagem é especialmente importante na obra de Gil Vicente. Seus personagens expressam-se em versos, fusão do teatro com a poesia. O padrão é o redondilho, com predominância do maior, verso típico daquela época. O efeito final é grandioso. Gil Vicente faz o texto fluir na boca dos personagens de maneira clara, sem deixar perceber que, por trás e no fundo, se trata de uma complexa rede textual, com metáforas, trocadilhos, ironias, rimas internas, balanços rítmicos, além da metrificação e de um esquema rítmico (de rima) tradicional. Gil Vicente é tão poeta quanto dramaturgo e, no caso do Auto da Barca do Inferno, é mais poeta do que dramaturgo.

Um teatro com temas profanos e sacros

O teatro de Gil Vicente reflete os costumes, como na Farsa de Inês Pereira, e trata do religioso alegórico, como no Auto da Barca do Inferno. Essa divisão caracteriza a ideia de um mundo em transição, própria do período Humanista, pois tanto centra-se no homem quanto na religião. O conceito de teatro religioso alegórico no Auto da Barca do Inferno é entendido a partir de sua estrutura, que se apóia num simbolismo baseado no maniqueísmo cristão que divide o mundo entre o Bem e o Mal, com os consequentes Céu e Inferno.


Para lembrar
Mas a ideia de teatro sacro (religioso) não deve ser confundida com teatro de louvor ou litúrgico. Ao longo de sua carreira, Gil Vicente identificou-se com uma postura radicalmente anticlerical, o que não significa absolutamente anticatólica.


Gil Vicente dividiu-se entre um espírito de religiosidade ortodoxa e uma ação contestatória e reformista. Fez de sua arte um instrumento de contestação e denúncia, graças a um poderoso senso de moral que permeia suas obras e ao prestígio que tinha junto aos reis portugueses, primeiro de D. Manuel I e depois de D. João III, de quem celebrou o nascimento. Apesar de toda essa proteção, sua sátira, às vezes, ultrapassava os limites do tolerável para a cúpula religiosa. Há indícios históricos de que ele foi perseguido e censurado. Talvez tenha até sido preso e temporariamente desterrado, no fim de sua vida, mais precisamente entre 1533 e 1536.

Um teatro rico em tipo sociais e personagens alegóricos



Para construir seu teatro crítico, satírico e moralizante, Gil Vicente busca principalmente personagens típicos, também chamados "tipos sociais". Esses personagens desempenham um nítido papel de representação social, em todas as suas camadas (clero, nobreza, povo), com tendência à caricatura. Eles têm fortes tintas sociais, mas falta-lhes densidade psicológica. Dessa forma, o dramaturgo português mostra a tendência de sua obra, inclinada para o retrato social mais ou menos estereotipado, com juízo de valores. 

No Auto da Barca do Inferno, esses juízos de valores serão manipulados por dois personagens, o Anjo e o Diabo, que personificam as ideias abstratas e puras do Bem e do Mal. Essas duas figuras são personagens alegóricos, funcionam como símbolos de uma ideologia – que, nesse caso, é a ideologia cristã. Mas, apesar de toda essa simbologia, a atenção do dramaturgo português está sempre centrada no mundo à sua volta e a alegoria mostra-se a serviço da observação da sociedade. 

Fonte:
 http://vestibular.uol.com.br

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