segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 29 - Angústia


Em Angústia (1936), Graciliano Ramos aprofunda a técnica do narrador em primeira pessoa utilizada em seus romances anteriores (Caetés, 1933, e São Bernardo, 1934), mas a leva às últimas consequências. O fluxo da consciência do narrador invade toda a narrativa.

A realidade em três planos

Angústia, publicado em 1936, é o livro mais complexo de Graciliano Ramos no que diz respeito aos recursos técnicos utilizados. Nessa obra, a percepção da realidade transcende o Naturalismo: a realidade é captada em fragmentos e deformada pelas disposições mórbidas de um narrador, Luís da Silva, o protagonista do romance. Dessa forma, a percepção da realidade é estilhaçada e converge para três planos: a realidade objetiva; a evocação do passado e a realidade deformada pela visão subjetiva do narrador. A realidade objetiva é captada por meio da descrição, em que se percebe alguma saliência naturalista, mas a subjetividade do narrador invade a narrativa o tempo todo, deformando essa mesma realidade a partir de uma linguagem expressionista, uma atmosfera de pesadelo e alucinação. Os sentidos se confundem nas mais variadas associações (ruídos, visões, lembranças). Em Angústia, Graciliano Ramos aprofunda certos aspectos que já estão presentes em seus romances anteriores (Caetés e São Bernardo), como a tensão entre o ser e o meio social. Em Angústia, porém, a tensão e a ruptura entre a realidade subjetiva do narrador Luís da Silva e a realidade que lhe é exterior chega ao paroxismo, ao auge. Por trás da máscara social de Luís da Silva, um simples funcionário público com veleidades intelectuais (é escritor e possui alguns manuscritos guardados), vai como que se desnudando, por meio de seu relato, o seu universo interior: ou seja, por trás do ser social, preso às convenções e às aparências, há um ser subterrâneo, selvagem, preso aos instintos e desejos mais profundos. Esse ser subterrâneo vai, aos poucos, dominando Luís da Silva e intensificando um sentimento de abjeção que ele sente em relação aos outros e a si mesmo, até chegar às vias do homicídio e do aniquilamento moral e social. 

Narrador suplanta a realidade

No livro , a problemática interna do narrador se sobrepõe à realidade objetiva. As pessoas, o ambiente e os objetos se dissolvem em uma realidade de contornos pouco nítidos: há escuridão, névoa, sons que se dispersam, imagens que se associam em um embaralhar de lembranças e sensações. O narrador guarda dos acontecimentos apenas fragmentos, pedaços de realidade. Em seus devaneios, há constantes alusões a bichos, que simbolizam a morbidez de seus estados anímicos: cobras, que surgem de suas evocações do passado, funcionam como uma espécie de símbolo de seus impulsos de morte e frustração sexual; os ratos, que habitam aos montes a casa do protagonista, associam-se ao sentimento de repulsa que ele sente por si mesmo e pelos outros. Os sons e as imagens ligadas ao presente e ao passado se entrecruzam, num embaralhamento dos sentidos. De sua casa, o personagem ouve os ruídos que vêm da rua ou das casas vizinhas: vozes, lamentos, barulho de objetos, água escorrendo. Os objetos à sua volta lhe trazem lembranças do passado, misturam-se aos seus instintos, aos seus desejos mais profundos. Portanto, em Angústia, o narrador abre as comportas de seu universo interior. Esse transbordamento do estado psicológico do narrador imprime ao romance uma atmosfera de delírio, de pesadelo. As imagens, os sons, as lembranças e os sentimentos se associam das mais variadas formas. Daí o aspecto fragmentário da narrativa: essas associações se repetem, tornando a narrativa enviesada, cheia de idas e vindas. Desse modo, o romance é uma profunda sondagem dos elementos mais recônditos da alma humana.

Para lembrar
Por meio dos devaneios e das mais variadas associações, o inconsciente do narrador vem à tona. Veja como o termo inconsciente é definido pelo Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira:

"Inconsciente – O conjunto dos processos e fatos psíquicos que atuam sobre a conduta do indivíduo, mas escapam ao âmbito da consciência e não podem a esta ser trazidos por nenhum esforço da vontade ou da memória, aflorando, entretanto, nos sonhos, nos atos falhos, nos estados neuróticos ou psicóticos, i. e., quando a consciência não está vigilante". Durante a década de 20, escritores como Oswald de Andrade e Mário de Andrade divulgaram as ideias do psicanalista austríaco Sigmund Freud no Brasil e é bem possível que, na composição de Angústia, Graciliano Ramos tenha sofrido influência dessas ideias.


Enredo

Angústia é o relato de Luís da Silva, um homem solitário, amargo e insatisfeito. É um simples funcionário público. Nas horas vagas, dedica-se ao ofício de escritor. Mora no subúrbio de Maceió com uma criada, Vitória, um papagaio e um gato. Seus melhores amigos são: Moisés, que lhe vende mercadorias a prestação e gosta de pregar a revolução operária; Pimentel, colega da repartição pública e Seu Ivo, um velho mendigo que o visita para pedir comida. 

O cotidiano de Luís da Silva é simples e mesquinho, dividido entre o trabalho na repartição pública, as tardes no quintal, lendo romances medíocres, e a visita dos amigos Moisés, Pimentel e Seu Ivo. Esporadicamente, passeia pela cidade, vai ao Café, onde a sua maior distração é ouvir a conversa dos frequentadores, ou vai ao Instituto Histórico, onde se aborrece com leituras de sonetos, recitais de música e muita retórica vazia.

Marina

Em uma das tardes em que está lendo, entediado, um dos habituais romances, avista, no quintal vizinho, uma jovem, Marina, que o atrai profundamente. Faz amizade com a jovem e, em poucos dias, estão namorando. Luís da Silva apaixona-se por Marina e a pede em casamento. Mas Marina é uma mulher fútil, ciosa de sua beleza juvenil, cheia de vaidade e ambição: inicialmente, aceita o pedido de casamento, mas suas aspirações estão longe da vida modesta que Luís da Silva pode oferecer-lhe. Decidido terminantemente a casar, Luís da Silva entrega à namorada suas parcas economias para a compra de um enxoval que o pobre homem jamais verá: o dinheiro é quase todo gasto em meias de seda e pó de arroz. Marina quer um casamento de gente rica, quer a casa cheia de tapetes e outros luxos.


Ciúme

Entretanto, em uma das visitas ao Instituto Histórico, Luís da Silva conhece Julião Tavares. Desde o início, o protagonista nutrira uma indisfarçável antipatia por Julião Tavares, homem rico, de uma elegância superficial e esnobe, com uma fala cheia de retórica e patriotismo. Porém, mesmo contra a vontade de Luís da Silva, o homem passa a frequentar constantemente sua casa. É nessas visitas que Julião Tavares conhece Marina e passa a assediá-la. Marina se deixa seduzir sem dificuldade e Luís da Silva, tomado pelo ciúme e pelo sentimento de derrota, deixa-se arrastar para um abismo interior sem volta.


Assassinato

Vários acontecimentos, como a gravidez de Marina (que esperava um filho de Julião Tavares), vão aumentando o ódio que Luís da Silva sente por ele. Para complicar a situação, Seu Ivo lhe dá uma corda de presente. Essa corda lhe inspira vários devaneios associados à ideia de morte e assassinato. Em uma noite de sofrimentos e delírios, Luís da Silva persegue o rival e o estrangula com aquela mesma corda que lhe fora presenteada. Depois de uma longa doença, causada pelo abalo nervoso que o assassinato lhe provocara, Luís da Silva conta sua própria história.

Um romance de confissão

Angústia é um romance de confissão, escrito em primeira pessoa. Luís da Silva é o que podemos chamar de narrador-protagonista. Todos os fatos são narrados segundo a visão desse narrador. Essa técnica é profundamente explorada no romance: toda a narrativa é permeada pelo fluxo de consciência do narrador. É o que poderíamos chamar, apesar da imprecisão do termo, de romance psicológico.

A situação trágica vivida pelo protagonista e o seu desespero interior se adaptam perfeitamente a esse tipo de narrativa: o narrador, ainda pouco afastado dos fatos que narra e das sensações que estes lhe causam, sente necessidade da confissão. Dessa forma, toda a narrativa pode ser compreendida como um longo monólogo interior, uma confissão que não visa um interlocutor e surge como uma profunda necessidade do narrador.

Sobre a forma como a técnica da narrativa em primeira pessoa é explorada em Angústia, diz o crítico Antonio Candido, comparando essa obra com os romances anteriores de Graciliano Ramos, também escritos em primeira pessoa:


"Como em Caetés e São Bernardo, a narrativa é na primeira pessoa; mas só aqui podemos falar propriamente em monólogo interior, em palavras que não visam interlocutor e decorrem de necessidade própria."

Personagens

O narrador e seu duplo Luís da Silva, o narrador e protagonista de Angústia, é um indivíduo frustrado, tímido, solitário e impotente, impossibilitado de adaptar-se a um meio social que o enoja e o deprime. Julião Tavares, seu rival, é o seu oposto, ousado, rico, galanteador, respeitado socialmente. Há, entre esses dois personagens, uma espécie de jogo de espelhos: Julião Tavares encarna a metade que falta a Luís da Silva. Essa identificação às avessas desarticula ainda mais os fios tênues do universo mental de Luís da Silva. Chega a um ponto em que, morbidamente, Luís da Silva se vê esmagado pela presença cada vez mais onipotente de seu rival, como se Julião Tavares preenchesse o próprio espaço que lhe cabe no mundo. Para entender melhor esse aspecto, veja este trecho, em que o narrador Luís da Silva se refere ao seu rival: 

"Derramava-se no bonde e, se alguém lhe tocava as pernas, desenroscava-se com lentidão e lançava ao importuno um olhar duro. Eu encolhia-me, reduzia-me e, em caso de necessidade, sentava-me com uma das nádegas."


Diante de uma mistura crescente de repulsão, nojo e secreta inveja, vai amadurecendo, no inconsciente de Luís da Silva, o impulso de matar e destruir. Até que Luís da Silva chega às vias de fato e estrangula o rival. 

Simbolicamente, o assassinato surge como uma espécie de necessidade de reequilíbrio: para o protagonista, não havia como viver à sombra daquela projeção sua às avessas. Para Luís da Silva, não havia como voltar atrás, ele teria de ir até o fim nessa luta contra o outro – que era, na verdade, uma luta contra si mesmo. Ou seja, Julião Tavares funciona como uma projeção das frustrações, dos recalques e dos desejos reprimidos de Luís da Silva.


Para lembrar
Segundo a psicanálise, projeção seria um mecanismo de defesa que consiste no indivíduo projetar seus próprios impulsos, seus conflitos, considerando-os como provenientes de outrem ou do mundo que o cerca.


Seres sem perspectiva

Para analisar os personagens do livro, não podemos esquecer que eles são apresentados segundo a visão do narrador Luís da Silva. Na maneira como apresenta os personagens, ele imprime toda a sua visão de mundo, seus sentimentos, seus desejos, suas angústias.

Luís da Silva é um inadaptado. Daí o motivo que as pessoas, em seu relato, são vistas em toda a sua miséria e brutalidade, quase reduzidas à animalidade. Por isso, os seres humanos são geralmente associados ao que há de mais instintivo e torpe: à sexualidade, à escatologia, à luta brutal pela sobrevivência, ao orgulho, à miséria e à morte. Há, portanto, uma profunda amargura na maneira como o narrador Luís da Silva encara seu semelhante. Os personagens de Angústia são seres sem perspectiva, entorpecidos pela vida.

Observe! 

Veja como, no trecho seguinte, o narrador Luís da Silva reduz o ser humano à sua animalidade:


"[...] Sinhá Germana concebia e paria no couro de boi, a que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Quitéria engendrava filhos no chão, debaixo das catingueiras, atrás do curral. E despejava-os na esteira de Isidora, em partos difíceis. Crias de cores e idades diferentes espalhavam-se por aquela ribeira..."


É interessante ainda observar, no trecho acima, como é enfocada a diferença de classe social entre Quitéria e Sinhá Germana: Sinhá Germana paria no couro de boi; Quitéria, por outro lado, paria os filhos no chão, debaixo das catingueiras. 

Percepção de tempo e espaço

Tempo

Sob o ponto de vista do tempo físico, os fatos que motivam a narrativa de Luís da Silva transcorrem no intervalo de um ano. Durante esse intervalo de tempo, Luís da Silva conhece Marina; apaixona-se; perde a namorada, que se deixa envolver pelos galanteios de Julião Tavares, e finalmente comete o crime.

"Foi entre essas plantas que, no começo do ano passado, avistei Marina pela primeira vez, suada, os cabelos pegando fogo", diz o narrador. É justamente a partir desse episódio que o narrador começa a contar a sua história, pelo menos no que se refere aos acontecimentos cruciais da narrativa. Sob esse mesmo viés de análise, é possível constatar que Luís da Silva começa a narrar a sua história 30 dias após o restabelecimento de seu estado febril causado pelo crime: "Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente", diz o narrador, na primeira frase do livro.

Nas primeiras páginas do romance, o narrador refere-se ao período que lhe está mais próximo do momento em que narra a história. Só depois, a partir da cena em que ele conhece Marina, ele retorna aos acontecimentos que motivaram o seu relato.

Esse seria o tempo dos acontecimentos que compõem o enredo do romance. No entanto, mais que o enredo, o que importa em Angústia é a vida interior e a análise psicológica do narrador Luís da Silva. Desse modo, predomina no romance o tempo psicológico. O tumulto psicológico do narrador acaba confundindo passado e presente. As lembranças do narrador invadem o presente, fundindo, por meio das mais variadas associações, o presente e o passado.

Embora os acontecimentos cruciais da narrativa decorram no intervalo de um ano, o narrador nos remete a fatos ocorridos na sua infância e juventude. Desse modo, o tempo se estilhaça. E, por outro lado, não obstante as constantes evocações do passado, o tempo faz um movimento circular: a narrativa começa 30 dias após o restabelecimento de Luís da Silva e termina nos momentos mais intensos de febre e delírio, ocorridos em consequência do crime. Ou seja, a noção de tempo não obedece ao padrão lógico de continuidade temporal.

Essa tendência a estilhaçar o tempo e não obedecer aos padrões lógicos de percepção temporal é muito comum no romance contemporâneo. Muitos a vêem como um reflexo do mundo moderno: com o avanço da tecnologia e da sociedade de consumo, o homem teria perdido a sua identidade com o mundo, resultando em uma percepção conturbada de tempo e espaço. 

Anote! 
Para compreender melhor essa noção de tempo psicológico, veja este trecho do livro O Tempo na Narrativa, do filósofo Benedito Nunes:

"A experiência da sucessão dos nossos estados internos leva-nos ao conceito de tempo psicológico ou de tempo vivido, também chamado de duração interior. O primeiro traço do tempo psicológico é a sua permanente descoincidência com as medidas temporais objetivas. Um minuto pode parecer-nos tão longo quanto uma hora se nos entediamos. Variável de indivíduo para indivíduo, o tempo psicológico, subjetivo e qualitativo, por oposição ao tempo físico da Natureza, e no qual a percepção do presente se faz ora em função do passado ora em função de projetos futuros, é a mais imediata e mais óbvia expressão temporal humana."


Espaço: cisão entre o ser e o mundo

Quanto ao espaço, é preciso salientar que o narrador Luís da Silva vive um profundo conflito de identidade entre o mundo urbano e o mundo rural.

Luís da Silva mora no subúrbio de Maceió, em um casebre de aluguel, próximo de uma usina elétrica, num meio social pobre e decadente. Assim ele descreve a cidade: 


"Bairro miserável, casas de palha, crianças doentes. Barcos de pescadores, as chaminés dos navios, longe."


Ou seja, Luís da Silva sente-se sufocado pelo espaço à sua volta, a casa pobre, infestada de ratos, a rua suja em que mora: 


"Tudo feio, pobre, sujo. Até as roseiras eram mesquinhas: algumas rosas apenas, miúdas. Monturos próximos, águas estagnadas, mandavam para cá emanações desagradáveis."


Desse modo, o personagem vive em constante conflito com a realidade que o cerca e se entrega às lembranças da infância: a casa do avô, a fazenda com seus bichos, a preta Quitéria, o poço da pedra. Não obstante, também as imagens do passado são de miséria e decadência: 


"Dez ou doze reses, arrepiadas no carrapato, envergavam o espinhaço e comiam o mandacaru que Amaro vaqueiro cortava nos cestos [...] Um carro de bois apodrecia debaixo das catingueiras sem folhas."


Então, de um lado, vemos um espaço urbano pobre e miserável; de outro, um espaço rural tomado pela decadência. Em qualquer um desses planos, há uma cisão entre o personagem e o mundo. Há como que uma fenda entre Luís da Silva e o espaço 
que o cerca. 


Para lembrar
Essa ruptura entre o ser e o mundo reflete as contradições do mundo moderno e os conflitos do homem contemporâneo, oprimido por uma sociedade em que os valores humanos se deterioram em prol do lucro e do progresso material.


Referências ao contexto histórico-social

A narrativa de Luís da Silva faz uma série de referências ao contexto histórico-social em que se insere. 

• A decadência do avô, antigo senhor de escravos, refere-se ao período de modernização do sistema produtivo ocorrido no Brasil no final do século XIX, que teve como consequência o declínio de setores ainda ligados à produção artesanal, como a produção de açúcar nos engenhos.
• A constante lembrança de cangaceiros nos remete ao fenômeno do chamado "banditismo social". Ocorrido entre 1870 e 1940, tal fenômeno, típico do Nordeste, foi motivado, entre outros fatores, pela miséria decorrente da seca e da decadência de certos setores produtivos (como a já mencionada produção de cana-de-açúcar) e pelos conflitos entre famílias (ocasionados em função da Lei da Herança, segundo a qual, com a morte dos proprietários, seus bens eram herdados pelo filho mais velho).
• Por fim, os personagens Julião Tavares e Moisés representam o embate de tendências ideológicas no Brasil durante as primeiras décadas deste século: Julião Tavares representa o "beletrismo" – a tendência de cultivar as belas-letras – e a retórica nacionalista, resquício ainda dos ideais positivistas que nortearam os primeiros anos da República; Moisés representa a entrada das ideias socialistas em certos meios sociais, sobretudo no proletariado urbano e em setores intelectuais. O fato de Moisés sentir-se constantemente perseguido pela polícia é uma referência direta aos conflitos entre os socialistas e o governo Vargas, como na Intentona Comunista (1935) e nas várias prisões de pessoas consideradas subversivas.


Para lembrar
→ Nos anos 30, havia um acirramento de conflitos ideológicos no cenário internacional: de um lado, as ideias socialistas, impulsionadas pela política internacionalista da União Soviética; de outro, o fascismo italiano e, na Alemanha, o nazismo de Hitler. Esse mesmo conflito ideológico atingiu a política nacional: diante da posição de Vargas, cada vez mais próxima do ideário fascista, e dos profundos entraves sociais, a ANL (Aliança Nacional Libertadora) foi fundada por setores do proletariado, das forças armadas e da intelectualidade com o intuito de combater o governo Vargas. Agrupados em torno da ANL, os comunistas deflagraram, em novembro de 1935, um levante no Rio Grande do Norte, com desdobramentos em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Derrotados, os líderes comunistas foram presos, entre eles, Luís Carlos Prestes, líder do Partido Comunista Brasileiro.

→ Graciliano Ramos foi vítima da política de Vargas. Em 1936, o escritor, que era então diretor da Instrução Pública de Alagoas, foi demitido de seu cargo e preso por motivos políticos. Só seria libertado um ano depois, após percorrer vários presídios. Essa experiência foi relatada pelo escritor no livro Memórias do Cárcere, publicado em 1953.

Linguagem - Entre a contenção e o transbordamento

Como observou o crítico Antonio Candido, no conjunto da obra de Graciliano Ramos há duas tendências: uma de equilíbrio, lucidez, concisão; outra de desordem e transbordamento. A primeira é a tendência mais marcante em todos os livros de Graciliano Ramos. Em Angústia, no entanto, impera a segunda tendência, funcionando como uma espécie de exceção no conjunto da obra do escritor.

Porém, o excessivo jorro de palavras, repetições e associações a partir de pequenos detalhes que vemos em Angústia surgem ao leitor como um caos organizado, que torna o material inteligível e lhe dá uma unidade. Além do mais, esse estilo é perfeitamente adequado aos objetivos do romance, que leva às últimas consequências a técnica da narrativa em primeira pessoa, abrindo todas as portas do inconsciente do personagem e, por outro lado, mimetizando o caos interior, o tumulto psicológico do narrador. 

A linguagem é expressionista, carregada nas tintas, fragmentária, pontuada de analogias e imagens que tendem ao insólito e ao inusitado, como as associações de cobras ou de canos com cordas. Todas essas imagens aludem, geralmente, às ideias de morte, de assassinato, de aniquilamento, de sublimação.

Mesmo assim, permanecem vários traços estilísticos dominantes em todas as obras de Graciliano Ramos. Há uma preferência pelos períodos curtos, pelas frases enxutas, pelo uso da parataxe (frases independentes, geralmente orações coordenadas, sem uso de conetivos). Há, também, um uso muito reduzido de adjetivos: pelo menos do adjetivo usado como adorno, vazio de significado. O autor, como em todos os seus livros, evita a descrição ampla e detalhista. E há, ainda, o aproveitamento da oralidade, do 
registro coloquial.
A linguagem do narrador Luís da Silva é uma linguagem dura, sem pompa; às vezes, chega a ser rude, tosca. Sobre essa característica, veja como o próprio narrador se refere à sua linguagem, comparando-a com a linguagem pomposa e artificial de 
Julião Tavares:


"Além disso Julião Tavares tinha educação diferente da nossa [...] Diante dele eu me sentia estúpido. Sorria, esfregava as mãos com esta covardia que a vida áspera me deu e não encontrava uma palavra para dizer. A minha linguagem é baixa, acanalhada. Às vezes sapeco palavrões obscenos. Não os adoto escrevendo por falta de hábito e porque os jornais não os publicariam, mas é a minha maneira ordinária de falar quando não estou na presença dos chefes. Com Moisés dá-se coisa semelhante.[...] As nossas conversas são naturais, não temos papas na língua."


Anote!
Sobre o transbordamento, o ininterrupto jorro de imagens e associações inusitadas e os vários volteios da narrativa de Angústia, é possível traçar um paralelo com o Surrealismo. O movimento surrealista surgiu em Paris e foi inaugurado em 1924 com o lançamento do Manifesto Surrealista. Seu principal mentor foi o escritor André Breton (1896-1970). Influenciados pelas ideias de Sigmund Freud, os surrealistas propunham uma escrita que resgatasse os conteúdos do inconsciente. Dessa forma, cultuaram o sonho, a escrita automática (a escrita sob o influxo do inconsciente, sem a mediação da lógica e da razão) e o resgate da intuição, do instinto, do primitivo.


A síntese por meio da metonímia

É interessante observar em Angústia o uso da metonímia – figura de linguagem que consiste em identificar um objeto por uma parte de seu todo (como vela por barco) ou identificar um elemento pela relação de causalidade que estabelece com um outro (como em sombra por árvore). Esse recurso possibilita uma grande síntese na descrição de objetos ou ambientes. Veja como o narrador apresenta a personagem D. Adélia: 

"D. Adélia, a voz sumida, os olhos assustados, parecia viver escondendo-se."


Com poucos detalhes, com recortes, o narrador descreve personagens e ambientes. Veja, nesse outro trecho, como é descrita a cidade:


"Bairro miserável, casas de palha, crianças doentes. Barcos de pescadores, as chaminés dos navios, longe."


Perceba como essa técnica, baseada na justaposição de imagens, aproxima-se da técnica cinematográfica.


Os tempos verbais

Quanto aos tempos verbais, é importante observar que, diferente do que ocorre em outras partes do romance, há, na primeira parte, o predomínio do presente (substituído, ocasionalmente, pelos pretéritos perfeito e imperfeito do indicativo, nas passagens em que irrompem as lembranças do narrador). Isso se deve ao fato de que, nessa primeira parte do relato, o narrador se refere a fatos que são concomitantes à produção da narrativa e, portanto, posteriores aos acontecimentos cruciais da história, relatados depois.

Discurso indireto livre


Como impera no romance o fluxo de consciência, há pouco espaço para o discurso direto. Geralmente, o narrador invade o discurso direto e narra ele mesmo o que dizem os outros personagens, misturando suas palavras às dos outros, em uma espécie de discurso indireto livre contaminado pelo fluxo de consciência, como podemos perceber no trecho que se segue, em que Luís da Silva conversa com Seu Ramalho: 


"D. Adélia, corada, risonha, de carnes enxutas, era um mulherão. O casamento fora quatro anos antes da viagem. Bonita de verdade. Com o véu, a grinalda de flores de laranjeira, dançara uma noite sem descansar. Olhava os moços cara a cara, e eles baixavam a cabeça.
– An! Os marmanjos desanimavam."


Vida e obra de Graciliano Ramos

Graciliano Ramos nasceu em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892. Filho de um casal sertanejo de classe média, Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos, era o primogênito de 15 irmãos. 

Graciliano iniciou seus estudos em Maceió, mas não chegou a completá-los. Não cursou faculdade. Em 1914, passou um ano no Rio de Janeiro, trabalhando como revisor de provas tipográficas dos jornaisCorreio da ManhãA Tarde e O Século. Porém, regressou a Palmeira dos Índios devido à morte de três irmãos e um sobrinho, vitimados pela febre bubônica. 

A estreia



Casou-se em 1915 com Maria Augusta de Barros, modesta costureira, e estabeleceu-se com uma loja de miudezas chamada Sincera. Cinco anos depois, enviuvou e, ficando com quatro filhos, iniciou a redação de Caetés, cujo cenário é Palmeira dos Índios. Escreveu também crônicas para três jornais: O Índio (Palmeira dos Índios), Jornal de Alagoas(Maceió) e Paraíba do Sul (Rio de Janeiro).

Em 1927, foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios e exerceu o cargo com honestidade e rigidez. Casou-se, depois de dois meses de namoro, com Heloísa de Medeiros, pouco antes de terminar a redação de Caetés.

Estilo conciso

Como seus relatórios ao governador eram redigidos num estilo depurado, acabou chamando a atenção do dono da Editora Schmidt, que publicaria mais tarde Caetés, estreia de Graciliano Ramos. Após renunciar ao cargo de prefeito, partiu para Maceió, sendo nomeado diretor da Imprensa Oficial do Estado de Alagoas. De 1933 a 1936, exerceu o cargo de diretor de Instrução Pública de Alagoas e durante esse período publicou São Bernardo (1934). 

Prisão

Em março de 1936, Graciliano foi preso sob a vaga acusação de comunismo (atividade considerada subversiva). Esteve em várias prisões (Recife, Rio de Janeiro, inclusive a Colônia Correcional da Ilha Grande), sofrendo toda sorte de humilhações, constrangimentos morais, vivendo situações que lhe abalaram a saúde. Dessa experiência, resultou o livro Memórias do Cárcere (publicado postumamente em 1953), sério depoimento da realidade brasileira durante o Estado Novo. Em janeiro de 1937, Graciliano Ramos foi libertado, depois da luta da esposa e de intelectuais, uma vez que não havia acusação formal ou julgamento, passando a morar no Rio de Janeiro. Participou de um concurso realizado pelo Ministério da Educação, ganhando o prêmio de Literatura Infantil com A Terra dos Meninos Pelados

O drama social e o pessoal

Em 1938, publicou Vidas Secas, quarto e último romance, voltado para o drama social e geográfico de sua região. No ano seguinte, foi nomeado inspetor federal do ensino secundário. Integrou o Partido Comunista de 1945 a 1947. Viajou para países socialistas do leste europeu em 1952, experiência descrita em Viagem. Já gravemente doente, foi a Buenos Aires para ser operado. Porém, em 20 de março de 1953, aos 60 anos, depois de ficar internado por dois meses, Graciliano Ramos perdeu a luta contra um câncer pulmonar, decorrente do cigarro – companheiro de escrita –, e morreu.

Fonte: http://vestibular.uol.com.br

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