segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 28 - Brás, Bexiga e B. Funda


Publicado em 1927, este livro de Alcântara Machado reúne histórias que mostram a vida dos imigrantes italianos nos bairros operários da cidade de São Paulo nas primeiras décadas deste século.

Alcântara Machado
Brás, Bexiga e Barra Funda – Notícias de São Paulo é composto por 11 histórias, entre contos e crônicas. A partir de 1961, elas foram sendo publicadas juntamente com as de Laranja da China, sob o títuloNovelas Paulistanas. Na época da primeira edição do volume, em 1927, três dessas historietas ("Gaetaninho", "Carmela" e "Lisetta") já haviam sido publicadas no Jornal do Commercio, as duas últimas acompanhadas da observação: "Para um possível livro de contos:Ítalo Paulistas".


Para lembrar
Assíduo leitor de jornais, Alcântara Machado colhia suas histórias nos aspectos fugazes do dia a dia do paulistano. O autor tinha faro inigualável para transformar a notícia de um atropelamento ou de um crime passional, o anúncio de um estabelecimento comercial ou uma simples nota de coluna social em matéria literária.

Os imigrantes italianos em foco

Família de integrantes italianos

Nos primeiros anos do século XX, a cidade de São Paulo era invadida pelos "novos mamalucos", "italianinhos", "carcamanos" em busca de integração e ascensão social. Na década de 1910, eles detinham o primeiro lugar entre os estrangeiros donos de imóveis na zona urbana, porém concentravam-se em bairros pobres e industriais, como Brás, Bexiga e Barra Funda. Esses imigrantes serviram de modelo para o autor escrever o livro.


Já no prefácio da obra, batizado como nome de "Artigo de Fundo", Alcântara Machado assinala que o livro é uma tentativa de "fixar tão-somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só". O autor seguia, dessa maneira, os passos de Oswald de Andrade e Juó Bananere (pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado), pioneiros da crônica de imigração na imprensa paulistana, que recorreram à paródia como máscara para veicular opiniões políticas da elite. 

Em seus textos, escreviam em um português macarrônico, misturando o português falado pelo caipira e pela população mestiça e negra com o calabrês, o napolitano e o vêneto (na verdade, um novo dialeto, inexistente na Itália). 

O português italianado

Alcântara Machado dispôs-se a homenagear a italianidade lingüística e comportamental que marcava o dinamismo da cidade em expansão, recriando-a na linguagem certeira e ligeira das notícias de jornal. Embora elogiasse as deformações da sintaxe e da prosódia empregadas por Juó Bananere ("aqui italianização da língua nacional, ali nacionalização da italiana, saborosa salada ítalo-paulista"), Alcântara Machado não o imita: integra vocábulos e estruturas frasais da língua italiana ao português coloquial dos personagens, preservando a brasilidade do narrador. 
Repare no seguinte fragmento de La Divina Increnca (1924), de Juó Bananere: 


"Conforme aparlê, o Semanigno, aquillo bandito celebro que pregô a faca na máia, fui prendido, interrogadimo butado incomunicabile inda a sulitara. Segondaferra o garçeriere fui lá buscá illo pr'a apurtá pr'u gabinetto di dentificaçò. 
Pensa che iilo stava lá? Una ova!!
Fugi chi né uni rojò."

O texto acima tem uma linguagem bem diferente do fragmento retirado do conto "A Sociedade", de Brás, Bexiga e Barra Funda:


"Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se. 

– Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce. 
– Sei, sei... O seu filho?
– Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?"


Recursos gráficos

Além das falas em italiano puro ("Evviva il campionissimo!") e daquelas em português macarrônico ("Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe."), o autor explora recursos como: 

• O uso de palavras em letras maiúsculas sugerindo aumento no volume da voz: "Da inde-pendência o brado re-TUMBAN-te!"; "Solt'o rojão! Fiu! Rebent'a bomba! Pum! CORINTHIANS!". 
• A separação de sílabas para reproduzir o ritmo do discurso: "CA-VA-LO!"; "Eu que...ro o ur...so! O ur...so!". 
• O uso de parênteses a indicar o berro distante: "(Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!)".
Onomatopeias

São especialmente expressivas as onomatopeias: "dlin-dlin" (sineta de escola), "uiiiiia" (buzina de automóvel), "prrrii!" (apito de juiz de futebol), "pan!" (cobrança de pênalti), "turururu —tuiururum!" (a vaia do saxofone). O efeito, embora ingênuo, casa bem com a evidente intenção de alcançar a máxima síntese de texto por meio de recursos estilísticos, como a elipse, a justaposição e a metonímia.


Figuras de discurso

As histórias de Brás, Bexiga e Barra Funda são contadas em terceira pessoa, ora por um narrador observador, que anota suas impressões a certa distância (como fotógrafo de situações), ora por um narrador onisciente, que penetra superficialmente no íntimo dos personagens. Nos dois casos, emprega-se o discurso direto, com a reprodução literal das falas dos personagens, sem intermediações, o que assegura o tom coloquial buscado pelo realismo do autor. 


Anote!
O narrador não privilegia a norma culta: o discurso em tom coloquial, natural, conciso demonstra a grande contribuição do Modernismo contra a prolixidade derramada, "bacharelesca", outrora valorizada na Literatura brasileira.


Alcântara Machado tem perfeita noção do ritmo e do colorido da linguagem oral. Pode-se apreciar sua expressividade de contador de casos nestas passagens do conto "Carmela": 


"E – raatá – uma cusparada daquelas. [...] Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta. [...] No degrau de cimento ao lado da mulher de Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe."

No mesmo conto, há trechos em que o narrador onisciente formula o discurso indireto em frases curtas: 


"O caixa d'óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado. [...] Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervosíssima."

O narrador vale-se também do discurso indireto livre, modulando sua expressão, ao apropriar-se das frases dos personagens, com entonação própria, obtida do vocabulário e da construção: 


"Percorre logo as gravuras. Umas teteias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo. [...] E atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola."


Anote!
Nas várias figuras de discurso utilizadas, nota-se a brevidade e fragmentação da linguagem coloquial, inclusive pelo uso do presente do indicativo: a correspondência entre o tempo da enunciação e o do enunciado faz com que o leitor perceba os fatos como se eles estivessem ocorrendo no momento da leitura.


Um passeio por São Paulo

Todas as histórias de Brás, Bexiga e Barra Funda localizam-se no espaço urbano de São Paulo, particularmente nos bairros que figuram no título da obra, embora não faltem citações sobre pontos então considerados "nobres" (avenidas Angélica, Higienópolis, Paulista) ou centrais (rua Barão de Itapetininga, largo Santa Cecília).

Excetuando-se o conto "Lisetta", todos os demais contêm indicações sobre logradouros, acompanhadas às vezes do número da casa ou da loja. "Carmela" detém o recorde, acumulando uns dez nomes do gênero em suas poucas páginas – a personagem passeia e conduz o leitor num tour pela cidade.

Anote!
Parece prioritário para Alcântara Machado sublinhar a contemporaneidade dos textos, tornando-os documentos de época com a menção frequente a marcas (goiabada Pesqueira, queijo Palmira, refrigerante Si-Si, cigarros Bentevi e Sudan Ovais, cervejas Antarctica, Pretinha e Hamburguesa); músicas ("Fubá", "Caraboo", "Zé Pereira", "Scugnizza"); periódicos (jornais Fanfulla, Gazeta; revista A Cigarra); estabelecimentos comerciais (Casa Clark, Salão Mundial, Casa São Nicolau); clubes (Esmeralda, Paulistano, Sociedade Benefìcente do Bexiga) etc.


O progresso metropolitano

O quadro de agitação da metrópole não ficaria completo se não houvesse referências às máquinas, símbolo do progresso. Afinal, essa era a palavra-chave na década de 20. Nesse contexto, são especialmente importantes veículos como bondes, coches, automóveis (identificados pelas marcas – Ford, Buick, Lancia, Hudson). Eles funcionam como desencadeadores de conflito ("Gaetaninho" e "O Monstro de Rodas"), como elementos caracterizadores de poder econômico ("A Sociedade" e "Carmela") ou de espaços ("Lisetta"). 

Barra Funda em 1940: tradicional bairro de italianos em São Paulo.

No conto "Tiro de Guerra nº 35", vários dados se atrelam ao bonde: a condição econômica do protagonista (cobrador), o espaço da cidade (a linha do bonde), um dado concreto da cultura popular (a ausência do cobrador no bonde inspira a seção de fofocas amorosas da revista A Cigarra), o nacionalismo jacobino (o cobrador deixa o emprego na companhia cujo nome homenageava o escritor italiano Gabrielle d'Annunzio para trabalhar numa similar que homenageava Rui Barbosa). 


Anote!
O excesso de referências desse tipo, útil às intenções documentais, torna-se um dos fatores do anacronismo dos textos. Pode-se dizer que eles se tornaram crônicas urbanas da fase em que Alcântara Machado vivia ainda na "adolescência literária", segundo análise do crítico Sérgio Milliet.

Bela Vista (Bexiga): um dos bairros dos imigrantes.

O ambiente exterior


As descrições espaciais propriamente ditas são raras: cita-se uma "rua suja de negras e cascas de amendoim"; comenta-se que "as bananas na porta da QUITANDA TRIPOLI ITALIANA eram de ouro por causa do sol"; registra-se a imagem dos "bondes formando cordão, apinhados,com gente no estribo. E gente na coberta. E gente nas plataformas. E gente do lado da entrevia.". Observe-se o emprego do polissíndeto para reforçar a ideia de acúmulo de pessoas.


Para lembrar
O autor escreve usando apenas o necessário para produzir impressões, disseminando os dados do ambiente nas entrelinhas dos enredos, o que confere às frases um colorido especial, pois evita digressões discursivas que quebrariam seu ritmo.


O tempo das narrativas e as narrativas no tempo    

O tempo cronológico da maioria dos contos é bastante breve, concentrando-se os fatos em horas, dias ou semanas, em razão dos próprios enredos. 

Em "O Monstro de Rodas", o relato não ultrapassa o período compreendido entre o velório e o enterro de uma criança; em "Corinthians (2) vs. Palestra (1)", o enredo inicia-se em plena partida de futebol para encerrar-se no momento das comemorações da torcida vitoriosa. 

Em "Amor e Sangue", Nicolino um dia passa por Grazia sem vê-la, no outro a aborda quando "as fábricas apitavam". Por fim, quando mais uma vez "as fábricas apitavam", ele a mata com uma punhalada. 

No conto "Carmela", a protagonista é convidada, num fim de tarde, para um passeio de carro; no dia seguinte o realiza, levando junto a amiga Bianca; no domingo posterior, passeia de novo, dessa vez sem a acompanhante. 

Estilo sintético    

Mesmo nos contos que cobrem uma extensão mais ampla da vida dos personagens (como "Nacionalidade", em que o enriquecimento e o abrasileiramento de Tranquillo Zampinetti vão da infância até o bacharelado do filho mais novo), é nítida a busca do autor pela síntese: passa-se de um momento a outro por meio de saltos que se traduzem graficamente por espaços em branco entre as partes de cada história. Empregam-se vários recursos para aparentar simultaneidade. 
 
Rua XV de novembro no início do século.
No conto "A Sociedade", por exemplo, a letra da música cantada pelo crooner de uma orquestra vem destacada em letras maiúsculas e fragmentada pelo relato do que ocorre no salão de baile, onde se ouvem trechos de várias conversas paralelas, ora transcritos em discurso direto, ora entrecortados pela repetição da referência genérica de que havia "alegria de vozes e sons". "O Monstro de Rodas" mostra em discurso direto a reza de uma Ave-Maria entremeada com a descrição de dados paralelos (carrocinhas derrapam na rua, alguém espia, alguém boceja). O momento mais dramático é acentuado pelo uso de parênteses para registrar ações simultâneas:  

"O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda." 


Como em outros contos, verifica-se também neste o recurso da justaposição do nome de um personagem e dos dizeres de uma placa, promovendo, assim, uma associação imediata que dispensa quaisquer esclarecimentos:   

"[...] Américo Zamponi (SALÃO PALESTRA ITÁLIA – Engraxa-se na perfeição a 200 réis)."


Dessa maneira, o autor obtém grande concisão ao substituir a eventual prolixidade discursiva pelo elemento concreto. Essa visão metonímica confere ao detalhe o poder de condensar o significado do todo.


Personagens superficiais ou trágicos?

Armazém da época no início do século. São Paulo cresce e torna-se um centro do comércio de importação e exportação.
Até mesmo alguns apreciadores das crônicas de Alcântara Machado criticam a falta de profundidade psicológica dos personagens de Brás, Bexiga e Barra Funda. Segundo eles, o autor limitou-se à criação de tipos, generalizando-os superficialmente e que, no fundo, encobririam o preconceito do "paulista quatrocentão" contra os imigrantes. Uma das críticas é a de que o autor jamais chegou a conviver com esses imigrantes, ao contrário de Juó Bananere que, enquanto era estudante da Escola Politécnica de São Paulo, freqüentava o Bom Retiro, reduto de "carcamanos". 
Essa suposição ganharia pertinência apenas se fossem desconsideradas as afirmações do autor de que não se tratava de sátira, de que não pretendia se aprofundar, de que o que desejava era prestar "uma homenagem à força e às virtudes da nova fornada mamaluca", "novíssima raça de gigantes". 

O destino dos personagens

Também seria preciso ignorar o destino dos personagens: moças bonitas iludem-se com sonhos de fortuna ou sucesso (Carmela e Miquelina estão fadadas a escolher parceiros "da colônia"), crianças morrem (Gaetaninho, a filha de Dona Nunzia), têm desilusões (Lisetta) ou são forçadas a abrir mão da própria identidade para obter uma estreita perspectiva de progresso (caso do órfão Gennarinho – cujo nome mescla o italiano Gennaro com o sufixo diminutivo do português "inho" –, que deve se tornar Januário para fazer jus à condição de herdeiro brasileiro).

Os novos-ricos

Mesmo os novos-ricos devem passar por muito trabalho e arcar com certas perdas. O Cav. Uff. Melli foi batateiro antes de se tornar a personificação do capital e padecerá socialmente com sua intransponível inadequação; Tranquillo Zampinetti começa fazendo barbas e acaba abrindo mão de suas prezadas raízes; Dona Bianca, enquanto sonha em morar em um palacete na avenida Paulista, passa horas no comando da cozinha e do bocce e tem um filho com a perna cheia de feridas.

Anote!
Verifica-se que há mais pontos para o drama, os limites e as dificuldades do que para a esperteza, o arrivismo bem-sucedido e o otimismo. Os detalhes cômicos não tornam risíveis as figuras dessa galeria: reforçam o patético das situações e consolam o leitor, ao mesmo tempo em que ampliam sua empatia.


A construção dos personagens

Eles são apresentados por meio de retratos muito econômicos. Em geral, a sua construção é feita a partir de dados inseridos dinamicamente no enredo. Suas características brotam da fixação instantânea de algum detalhe destacado num momento de ação, ou seja, decorre de uma alternância entre o contar e o mostrar: no lugar da adjetivação tradicional, são os fatos e dados concretos que os caracterizam cinematograficamente. É o que se pode ver nas seguintes descrições:

Gaetaninho é ressaltado por suas sardas: 


"Virou o rosto tão feio de sardento, e viu a mãe e viu o chinelo."


Em Gennarinho, o detalhe do nariz escorrendo retrata a falta de polidez do personagem, em contraponto aos componentes "chiques" de seu visual: 


"[...] com o nariz escorrendo. Todo chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão."


Na descrição de Nicolino, o leitor capta o estado de alma do protagonista pela avaliação de outro personagem:


"la indo na manhã. A professora pública estranhou aquele ar tão triste."


A italianice de Nicolino está concentrada em um movimento típico, indicador de sentimentos violentos e promessa de vingança: 


"Nicolino apertou o fura-bolos entre os dentes."


Detalhes de vestuário assumem a ação para denotar status e comportamento, como se vê na descrição de Adriano: 


"A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino."

Técnica semelhante é utilizada para descrever Teresa Rita: 


"Vestido de Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço."


Na descrição de Carmela, as peças do vestuário e o escandaloso da nudez dão conta da vulgaridade da personagem, ressaltada pela pretensa elegância da combinação de cores: 


"O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelho de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo para os lábios dos amadores."

O leitor vê Carmela à medida que ela se vê, isto é, participa da observação do  próprio texto. 


"Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas."

A sequência de ações coordenadas informa concretamente o contentamento de Natale, detido pelo hábito ou pela necessidade de economizar. Graças à pontuação e ao uso do assíndeto, reproduz-se nas frases o ritmo do que ocorre e se faz.


"Deu na Dona Bianca um empurrão contente da vida, deu uma volta sobre os calcanhares, deu um soco na cômoda, saiu e voltou com meio litro de Chianti Rufino. Parou. Olhou para a garrafa. Hesitou. Saiu de novo. E trouxe meia Pretinha."


Os figurantes


Não poderiam faltar nos painéis montados por Alcântara Machado. Embora possam estar desligados do enredo, são essenciais ao contexto global do livro: representam a heterogeneidade da população na capital, abarcando, por estereótipos, proletários italianos e negros em convivência com as famílias burguesas, pintadas também com cores críticas. Sua presença, muitas vezes, limita-se à menção de nome e profissão:

"Conversando com o Geribello, o sapateiro, o pai da  Genoveva."

Ou então a algum dado valorativo: 


"O filho do doutor da esquina, que era muito pândego e comprava cigarros no armazém mandando-os debitar na conta do pai com outro nome..."

Os figurantes aparecem também por meio da informação sobre sua raça: 


"Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar: [... ]"

Ou ainda por seu nível cultural:


"O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos."


Humor elitista ou crítica social?

Embora Alcântara Machado afirme que Brás, Bexiga e Barra Funda não é uma sátira, há quem veja, por trás da intenção de fixar o ambiente urbano dos pobres, um elitismo incontornável, como se o autor não pudesse abandonar sua condição de aristocrata, limitando-se a olhar de fora ou de cima, com uma simpatia muito próxima do paternalismo. 


Para lembrar 
Não se deve descartar a constatação de que o efeito cômico obtido por Alcântara Machado, por meio de uma sutil ironia, ressalta o caráter de documento e crítica social das histórias, em que o riso mascara e ao mesmo tempo revela uma grande dose de piedade.


Ressalte-se ainda que a obra é dedicada a Lemmo Lemmi (1884- 1926), popularizado pelo pseudônimo Voltolino, grande ilustrador e caricaturista politicamente engajado, que procurava retratar a situação enfrentada pelos imigrantes no Brasil, mostrando uma realidade bem diferente das informações oficiais divulgadas pelo governo.

Um autor versátil e inquieto

Antônio Castilho de Alcântara Machado D'Oliveira nasceu em 25 de maio de 1901, São Paulo, numa família representativa da aristocracia da terra, orgulhosa de exibir em sua linhagem políticos e letrados. De uma frase de seu pai, membro da Academia Brasileira de Letras, teria sido cunhada a expressão "paulista de quatrocentos anos", até hoje empregada como epíteto enaltecedor da condição de verdadeira brasilidade.

Modernismo

Acompanhando a tradição familiar, Alcântara Machado cursou a Faculdade de Direito de São Paulo, de 1919 a 1923, iniciando nesse período uma intensa atividade jornalística que nunca abandonaria. Além de colaborador de vários jornais e revistas (Jornal do CommércioRevista do BrasilDiário NacionalDiários Associados etc.), dirigiu várias publicações ligadas ao Modernismo, todas de vida breve, como Terra Roxa e outras Terras (1926), Revista de Antropofagia (1928), Revista
Nova
 (1931). 

Se Alcântara Machado esteve ligado aos principais artistas do Modernismo brasileiro, não significa que sempre defendeu as ideias do movimento. Quando os modernistas apresentaram seus trabalhos no Teatro Municipal de São Paulo, durante a Semana de Arte Moderna de 1922, Alcântara Machado chegou a vaiá-los. O motivo da mudança de atitude talvez seja explicado por uma viagem de quase oito meses que fez pela Europa após a Primeira Guerra Mundial, em 1925, durante a qual pôde observar com outros olhos o Brasil de sua geração, como registrou em uma crônica: 

"O horror não coube na Europa e transbordou.
O mundo inteiro sentiu o abalo. No Brasil o que só estava de pé por milagre desmantelou-se logo em ruínas. Tudo no chão: finanças avariadas, literatura erradíssima, política inqualificável, jornalismo desonesto [...]. E me deixem agora falar da literatura, coitadinha. Foi nela bem ou mal que a revolta da geração explodiu primeiro. 

Decidiu-se começar por aí matando o que já estava morrendo. [...] Os helenos foram enxotados. Que apareçam os brasileiros." 
(Cavaquinho e Saxofone)

Pathé-baby

Os episódios dessa viagem, publicados no Jornal do Commércio, compuseram seu primeiro livro: Pathé-BabyPanoramas Internacionais, editado em 1926, com prefácio telegráfico de Oswald de Andrade:


"[...] culpa sua ter esgotado literatura viagens esse cinema com cheiro que é Pathé-Baby."


Anote!
O título desvenda a intenção: menciona uma marca de máquinas de filmar e Alcântara Machado procurava registrar impressões fugazes, captando o maior grau informativo dos detalhes inesperados, triviais, em frases nominais curtas e ágeis que marcariam seu estilo e lhe valeriam, a seu ver sem justiça, a "fama (ou cousa parecida) de gozador e de seco".


Brás, Bexiga e Barra Funda

O segundo livro publicado foi Brás, Bexiga e Barra Funda (1927). No ano seguinte, lançou Laranja da China, coletânea cujo título foi extraído de uma paródia dos acordes da introdução do Hino Nacional ("Laranja da China, Laranja da China, Laranja da China/Abacate, cambucá e tangerina", conforme o poema "O Amador", de Mário de Andrade). 

Nessa fase, dirigiu a "Primeira Dentição", da Revista de Antropofagia, até se desligar do grupo, juntamente com Mário de Andrade, para formar a "corrente brilhante, a que vivia nos salões da burguesia paulista e que o milionarismo displicente de Antônio de Alcântara Machado encarnou", no dizer de Oswald de Andrade. Oswald o acusou de desperdiçar sua "sensibilidade e talento para compreender os tempos novos" na "suave ilusão de que a Antropofagia era uma piada". 
Ridicularizado pelos "antropófagos"

Em 1928, Alcântara Machado publicou sua última obra em vida: uma monografia premiada pela Sociedade Capistrano de Abreu, Anchieta na Capitania de São Vicente. O trabalho forneceu mais munição para que os "antropófagos" radicais o ridicularizassem, desta vez por acreditar "em carpintaria teatral, no padre Anchieta e no monstrengo (sic) mental que foi Capistrano de Abreu. Pior: Convencido que está tendo influência na prosa brasileira!". 



Para lembrar
Se Alcântara Machado combateu o vício da verbosidade e da eloquência vazia, com o passar dos anos, distanciou-se dos modismos que marcaram a "fase heróica" do Modernismo. 

Mana Maria (romance inacabado) e Vários Contos (publicações póstumas, 1936) atestam a busca de maior penetração psicológica e uma linguagem mais segura e equilibrada, livre da insistência em certos recursos estilísticos e truques do "fazer moderno".


Textos de circunstância e a política

Seus "textos de circunstância", publicados em jornais e revistas sob o título Cavaquinho e Saxofone (1940), esclarecem muito a respeito de seus pontos de vista sobre as artes, a mentalidade e a política da época, assim como denunciam a extrema vivacidade e inquietação que, se o levaram a criticar a "barreira de ignorância e de mesmice, de tradição e de pieguice que parecia invencível" na cultura brasileira (o "meufanismo" e as "potocas românticas"), levaram-no também a incursionar por diferentes gêneros sem aprofundar-se em nenhum. Após mais uma longa viagem à Europa (de outubro de 1929 a junho de 1930), envolveu-se também na política, atuando a favor da Revolução Constitucionalista de 1932 com um inovador trabalho na Rádio Record. Em 1933, transferiu-se para o Rio de Janeiro. No ano seguinte, elegeu-se deputado federal por São Paulo para a Assembleia Nacional Constituinte. Morreu em 1935, aos 34 anos, vítima de uma apendicite diagnosticada tardiamente.


Fonte: http://vestibular.uol.com.br

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