segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 25 - Memórias Póstumas de Brás Cubas


Publicada em 1881, esta obra de Machado de Assis inaugura o romance psicológico na Literatura brasileira.

Para muitos críticos, a obra de Machado de Assis poderia ser dividida em dois momentos bem distintos: as obras da juventude, com forte influência do Romantismo, e seu progressivo amadurecimento até chegar ao Realismo. Entre as obras realistas, as mais destacadas e consideradas são: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899).

O primeiro romance moderno

Memórias Póstumas de Brás Cubas é, provavelmente, o primeiro romance moderno produzido no país: é o marco do Realismo, trazendo o romance psicológico para a Literatura brasileira. 


Para lembrar
Nesta obra, Machado de Assis desloca o foco de interesse do romance. Não trata diretamente da vida social ou da descrição das paisagens, mas da forma como seus personagens veem as circunstâncias em que vivem. Em vez de trabalhar os espaços externos, investe na caracterização interior dos personagens, com suas contradições e problemas existenciais.

Dois tipos de Realismo

O Rio de Janeiro na época de Machado de Assis, em meados do século passado.

O chamado Realismo na Literatura brasileira compreende manifestações literárias muito diferentes, embora todas marcadas pela oposição à tendência idealizante do Romantismo e pela atitude crítica em relação à sociedade. Alguns anos depois da publicação de Memórias Póstumas, surge o romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, editado em 1890. Esse romance é também considerado um clássico do Realismo, embora tenha características bem diferenciadas das da obra de Machado de Assis. No livro de Azevedo, a trama desenvolve-se em uma habitação coletiva do Rio de Janeiro, onde vivem e circulam operários, prostitutas e personagens das mais variadas classes sociais. A composição desses tipos e do enredo tem a intenção de descrever objetivamente a vida de uma determinada sociedade e retratar seu funcionamento. O realismo de Machado de Assis despreza tanta objetividade. O escritor concentra sua narrativa na visão de mundo de seus personagens, expondo suas contradições.


Anote!
A classificação mais adotada para definir a escola literária a que pertence Machado de Assis na segunda fase de sua obra é Realismo psicológico. O recurso que ele utiliza para discutir a sociedade é a abordagem, em profundidade, da individualidade e do caráter dos personagens.


Uma obra com pouca ação e muitas surpresas

Na abertura do livro, uma dedicatória escrita sob a forma de epitáfio anuncia o narrador desse romance inusitado: Brás Cubas, um defunto-autor que começa contando detalhes do seu funeral. Depois de algumas digressões, ele retoma a ordem cronológica dos acontecimentos, relatando a infância e a primeira paixão da adolescência, aos 17 anos, pela cortesã Marcela. Presenteia tanto a amada que o pai, irritado com o gasto excessivo, manda-o para Coimbra, Portugal, para estudar Direito.

Assim como foi, também volta a chamado do pai porque a mãe está à morte. Namora então Eugênia, filha de uma amiga pobre da família, enquanto o pai procura arranjar um casamento de interesse com Virgília, filha de um político, o Conselheiro Dutra. Ela, no entanto, casa-se com um político, Lobo Neves, e posteriormente torna-se amante de Brás, mantendo com ele encontros na casa habitada por dona Plácida. Antes de o caso começar, morre o pai de Brás. Começa então um litígio entre ele e a irmã Sabina pela herança. Em meio a tudo isso, o protagonista Brás reencontra Quincas Borba, amigo dos tempos de escola, que lhe apresenta uma doutrina filosófica que criara, o Humanitismo.

O romance termina com a partida de Virgília para o Norte, acompanhando o marido, nomeado presidente de província. Brás namora então a sobrinha do cunhado Cotrim, mas a garota morre aos 19 anos. Ele, que já se tornara deputado, fracassa na tentativa de virar ministro de Estado. Frustrado, funda um jornal de oposição. Percebe, então, que Quincas Borba está enlouquecendo progressivamente. Procurado por Virgília, já idosa, Brás ampara dona Plácida, que morre pouco depois. 

É um período cheio de perdas e decepções: morrem Marcela, o louco Quincas Borba, Lobo Neves e Eugênia aparece em um cortiço. Ao tentar inventar um emplasto que lhe daria a fama tão desejada, Brás Cubas adoece e recebe a visita da ex-amante Virgília e do filho dela. Morre depois de um delírio, aos 64 anos. Decide contar sua vida em detalhes, mas, pouco sistemático que é e ainda excitado pela experiência da morte, sua narrativa segue a lógica do pensamento.


Anote!
O caráter inovador de Memórias Póstumas de Brás Cubas não está na história propriamente dita ou na sequência cronológica dos fatos. A melhor chave para compreender a obra são as reflexões do personagem, como elas se encadeiam, e os eventos que ele vive.


Narrador – O personagem central


O romance tem uma perspectiva deslocada: é narrado por um defunto, que reconta a própria vida, do fim para o começo, num relato marcado pela franqueza e inserção. "Falo sem temer mais nada", diz o morto. É Brás Cubas, personagem "esférico", ou seja, de grande densidade psicológica, quem comenta as próprias mudanças.


Para lembrar
Brás Cubas, classificado pelos críticos como o grande hipócrita da Literatura brasileira, é um sujeito sem objetivos e muito contraditório, sempre rondando a periferia do poder. Típico burguês da segunda metade do século XIX, encarna o homem que passou a vida sem conquistar nenhuma realização efetiva.


Caricatura de Machado de Assis na Semana Ilustrada de 13 de novembro de 1864.
Se o personagem fora uma criança abastada e protegida na infância, torna-se um jovem adulto leviano, em busca da melhor maneira de tirar vantagem. Sua conduta fica explícita quando descreve sua formação universitária na Europa: "Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim – embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e política para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação [...]".


Quando volta ao Brasil, por causa da doença da mãe, se defronta pela primeira vez com a questão da morte e vive então um momento de introspecção e reflexão.Quando reencontra Marcela velha e doente, retoma a ideia da passagem do tempo. A isso Brás chama de teoria das edições da vida, anunciada nos primeiros capítulos, mas comentada muito depois. 


"Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que era luxuosa."


Na maturidade, começa a buscar a compensação pela existência sem nada de notável, sem filhos ou realizações: consegue um cargo público, busca notoriedade e respeitabilidade ao querer tornar-se ministro. Pouco antes de morrer, imagina ainda um último modo de se perpetuar: inventando um emplasto, uma medicação sublime.


Personagens complementares

Os personagens criados por Machado de Assis entram e saem de cena conforme os pensamentos de Brás Cubas. Entre eles, quem merece maior destaque é Quincas Borba que, mais tarde, será o personagem-título de outro romance do autor. Ele influencia profundamente o narrador com a sua teoria do Humanitismo. Os dois conheceram-se no colégio e reencontram-se muitos anos depois. Quincas é um mendigo que vai enlouquecendo progressivamente. 


Ao morrer, está completamente fora de si. Seu Humanitismo prega que tudo o que acontece na vida faz parte de um quadro maior de preservação da essência humana. 


Anote!
A ironia é uma das marcas da obra de Machado de Assis. Neste trabalho, isso fica claro quando o autor faz com que uma doutrina de valorização da vida seja defendida justamente por um mendigo que morre completamente louco.


No contexto do romance, o Humanitismo convém a Brás para justificar sua existência vazia. A teoria de Quincas Borba dá a ele uma ilusão da descoberta de um sentido para a vida. A morte de Quincas Borba reconduz Brás Cubas ao confronto com a vacuidade de sua existência. Machado confirma assim a tese anunciada no capítulo 7 – "O Delírio", sobre a perseguição inútil da felicidade.


Anote!
Quincas Borba é importante porque introduz Brás Cubas na teoria que inventou, o Humanitismo. Na verdade, a teoria do mendigo é uma espécie de caricatura que Machado de Assis faz do positivismo e do evolucionismo, teorias científicas e filosóficas em voga na época que atribuem sentido de evolução mesmo às fatalidades da vida.

As inovações de Machado de Assis 

Escritor dedicado à problematização e ao questionamento da função da Literatura, Machado de Assis inova, neste livro, a temática, a estrutura e a linguagem.   

O adeus ao Romantismo

Na temática, investe na complexidade dos indivíduos, que retrata sem nenhuma idealização romântica:


"Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis [...]".


Aqui, por exemplo, constrói uma frase realista típica, contrapondo ao romantismo do envolvimento de 15 meses, os 11 contos de réis. Ao contrário dos personagens românticos, que se movem por um objetivo, e estabelecem metas ou fazem algo notável, a trajetória de Brás Cubas e dos personagens que o circundam nada tem de especial. Muitas vezes, eles se norteiam, como no caso de Marcela, pelo mais vil dos interesses. No final da vida, Brás Cubas conclui que precisa deixar alguma realização e se anima com a ideia de criar um emplasto com seu nome, algo que o tornaria famoso.   


Um texto ao ritmo do pensamento

A estrutura de Memórias Póstumas de Brás Cubas tem uma lógica narrativa surpreendente e inovadora. A sequência do livro não é determinada pela cronologia dos fatos, mas pelo encadeamento das reflexões do personagem. Uma lembrança puxa a outra e o narrador Brás Cubas, que prometera contar uma determinada história, comenta todos os outros fatos que a envolvem, para retomar o tema anunciado muitos capítulos depois.


Anote!
Organizados em blocos curtos, os 160 capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas fluem segundo o ritmo do pensamento do narrador. A aparente falta de coerência da narrativa, permeada por longas digressões, dissimula uma forte coerência interna, oferecendo ao leitor todas as informações para conhecer a visão de mundo de um homem que passou pela vida sem realização nenhuma, apenas ao sabor de seus desejos.


Logo nas primeiras páginas, o escritor brinca com a expectativa do leitor de chegar logo às ações do romance. Machado de Assis, por intermédio do seu narrador, se dirige diretamente ao leitor, metalinguisticamente  para comentar o livro. Diz Brás Cubas:  


"Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem."


Anote!
Ao usar a metalinguagem, Machado convida o leitor a refletir sobre a estrutura da obra e perceber dois níveis de leitura: o que revela diretamente o personagem e o que o faz objeto de crítica do autor. 


Um experimentador da linguagem 

Machado de Assis foi o mais ousado dos escritores brasileiros anteriores ao Modernismo (1922) na experimentação de novas formas de expressão. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas mostra sua desconfiança da articulação perfeita entre o texto e a realidade e procura adequar a forma ao conteúdo. Exemplo: para traduzir a frustração de Brás Cubas quando não consegue se tornar ministro, a solução do autor foi deixar o Capítulo 139 em branco. No capítulo seguinte, explica:

"Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior.

Na época, o trabalho escravo ainda era a base da economia brasileira.

O autor também questiona a forma tradicional de expressão, acreditando que falta a ela a capacidade plena de levar ao leitor os sentimentos do personagem. É essa preocupação que faz Machado de Assis subverter a forma para adaptá-la ao conteúdo que deseja transmitir, como neste trecho do capítulo 55 – "O Velho Diálogo de Adão e Eva" –, em que descreve o auge da paixão entre Brás Cubas e Virgília:


"Brás Cubas
. . . . . . ?
Virgília
. . . . . .
Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Virgília
. . . . . . !
Brás Cubas
. . . . . . .
Virgília
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .? . . . . . . . . . . . . . ."


Ironias e digressões

A ironia é um dos traços mais marcantes da obra de Machado de Assis e aparece ainda mais acentuada nos chamados romances da maturidade. Pode ser entendida como mais um recurso para combater as verdades absolutas, das quais desacreditava por princípio. A construção irônica prevê sempre outros sentidos para o que é dito.   


Anote!
Machado de Assis utiliza-se da ironia como um recurso para fazer o leitor desconfiar das declarações, pensamentos e conclusões do narrador Brás Cubas.

Ao comentar, no primeiro capítulo, sobre o amigo que lhe presenteia com um empolado discurso fúnebre, o narrador agradece as palavras ditas em tom de comoção exagerada com uma frase certeira:


"Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei."


A digressão é outro elemento importante da linguagem machadiana. Consiste na interrupção do fluxo narrativo, que envereda por assuntos desvinculados do tema inicial, mas mantendo com ele alguma analogia criada pela mente de quem conta. Essa analogia, com algum esforço, pode ser percebida pelo leitor, desde que ele se mantenha atento.


Anote!
O leitor de Machado é constantemente solicitado a interagir criticamente com a obra, distanciando-se ainda mais do modelo de leitura proposto pelos romances românticos, que mobilizam a emoção e a imaginação.


É o que acontece, por exemplo, na parte inicial do romance, quando Brás Cubas deixa em suspenso por vários capítulos a explicação para sua morte, que prometera desde o início, para passear descomprometidamente por assuntos tão díspares quanto as pirâmides do Egito e a sua árvore genealógica. Quando volta a falar da causa mortis, é para comentar, com ironia "[...] acabemos de uma vez com o nosso emplasto". Como se já tivesse explicado antes do que se tratava!

Vida e obra


Um escritor consagrado
Machado de Assis

Considerado por muitos como o maior escritor brasileiro, Joaquim Maria Machado de Assis teve uma existência relativamente estável e conheceu em vida o prestígio e a fama que lhe cabiam. Foi um dos fundadores, em 1896, da Academia Brasileira de Letras e eleito seu presidente vitalício. Ao morrer, em 1908, recebe honras fúnebres de chefe de Estado.

Nada poderia contrastar mais vivamente com seu nascimento, em 1839, no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, e com sua infância de menino órfão e pobre. Entre nascimento e morte, Machado percorreu um duro caminho de quem se faz pelas próprias mãos – mulato pobre do subúrbio, ele se transformaria em um dos mais respeitados intelectuais da Corte. Pelo que indicam os registros, Machado de Assis não frequentou a escola, embora tivesse aprendido a ler antes dos 10 anos. Ainda criança, vendeu doces na rua para ajudar a sustentar a casa. Caixeiro de uma livraria, tipógrafo e revisor foram algumas profissões que exerceu antes de se tornar jornalista e escritor. A estabilidade econômica, porém, veio de outras fontes. Como uma boa parcela da intelectualidade brasileira da época, Machado ingressou no funcionalismo público. Chegou a fazer carreira, foi oficial-de-gabinete de ministro e diretor de órgão público. Em 1889, ano da Proclamação da República, dirigia a Diretoria do Comércio. Nessa época, já era um escritor consagrado.

A carreira de Machado como escritor contou com uma outra base sólida: o casamento estável com Carolina Novaes, uma portuguesa um pouco mais velha que o escritor.


Uma obra em dois tempos

Seu primeiro texto publicado foi o poema "Ela", na revista A Marmota Fluminense, em 1855, e seu primeiro livro de poemas, Crisálidas, é de 1864. Em 1870, publica mais dois livros de poemas, Falenas e Contos Fluminenses. Machado de Assis começa a publicar romances no ano seguinte: Ressurreição, ainda sob influência do Romantismo.

A parte mais significativa de sua obra – a chamada obra da maturidade – começa a aparecer entre 1881 e 1882, com a publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e dos contos reunidos em Papéis Avulsos. Nestes livros, e mais tarde em obras-primas como Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), desenvolve uma prosa realista, hábil em compor complexos retratos psicológicos e que se distancia tanto da idealização romântica quanto dos exageros cientificistas do Realismo/Naturalismo. Em 1904, a vida de Machado de Assis é abalada pela morte da esposa, sua companheira por 35 anos. Nesse mesmo ano, Esaú e Jacó é lançado. No ano de sua morte, 1908, é publicado Memorial de Aires

Cultuado em seu tempo (e até hoje) como escritor "clássico", representante máximo de nossa "boa Literatura", Machado de Assis soube, como nenhum outro escritor brasileiro, revelar os meandros da alma humana e combater, pela ironia sutil, as mazelas de nossa sociedade, ainda colonial, escravocrata e autoritária.


Fonte: http://vestibular.uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário