segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 22 - O Guarani


Um clássico da Literatura brasileira, o primeiro romance indianista de José de Alencar – cuja história de amor tem como pano de fundo as margens do rio Paraíba – é também uma das mais significativas obras literárias nacionais.

Entre os meses de janeiro e abril de 1857, um escritor cearense de apenas 28 anos prendeu a atenção dos leitores da época ao contar, nas páginas do jornal Diário do Rio de Janeiro, a história de amor protagonizada pelo índio Peri. Chamava-se José de Alencar e iria se tornar o maior ficcionista romântico nacional. Sua formação e imaginação fértil, somadas às frequentes leituras de folhetins – histórias narradas em capítulos, publicados diariamente em jornal –, ajudaram-no a compor seu estilo literário.

A realidade brasileira

A miscigenação do índio com o branco é o centro da história de O Guarani, obra que fala do amor de Peri e Ceci, moça branca, filha de um nobre. A obra, representante da corrente indianista, procura valorizar o índio, contrapondo-se aos heróis dos romances estrangeiros. José de Alencar foi um inovador da linguagem literária e um dos responsáveis pelo abrasileiramento da Literatura. Seu desejo era criar uma literatura que mostrasse a realidade brasileira. Para isso, valeu-se de um gênero literário que ainda engatinhava no Brasil: o romance. Com ele, o autor encontrou a melhor forma de idolatrar o índio e as belezes de sua terra. Em O Guarani, Alencar mesclou o tratamento do índio com o exotismo da Idade Média – idealizada pelo escritor inglês Walter Scott – e com as aventuras dos heróis do romacista francês Alexandre Dumas, dois de seus autores prediletos. Com isso, atingiu um público muito maior do que os autores que o precederam na apresentação da figura do índio como símbolo da pureza nacional. Basílio da Gama e mesmo Gonçalves Dias, por exemplo, jamais foram tão populares quanto José de Alencar.

Os folhetins

Os brasileiros que acompanhavam a distância as aventuras de um Ivanhoé ou de um D'Artagnan – transportando-se, em espírito, para os campos da Inglaterra medieval ou para a Paris do rei Luís XIII – descobriram a história daquele que poderia ser considerado o primeiro super-herói brasileiro: o índio Peri. Quando surge a história do amor de Peri pela doce e meiga Ceci, a publicação de romances de autores nacionais em folhetins já se tornara comum no país.

Anote!
Teixeira e Sousa, considerado por muitos nosso primeiro romancista, inaugurou o folhetim em 1843 com O Filho do Pescador. No ano seguinte, Joaquim Manuel de Macedo, na época, um jovem estudante de Medicina, publicou A Moreninha, o primeiro romance nacional "apreciável pela coerência e pela execução".


A corrente açucarada dos primeiros folhetinistas nacionais, vêm se juntar, em 1852, obras de romancistas como Manuel Antônio de Almeida, com Memórias de um Sargento de Milícias, além da obra de Joaquim Manuel de Macedo. Mas embora fizessem sucesso junto ao público, esses primeiros romances foram considerados "leitura agradável para estômagos fracos".


Para lembrar
Esse gênero literário novo e "fácil" introduzido na Literatura brasileira – o romance – ainda aguardava por seu momento de explosão. Quando José de Alencar hipnotizou os leitores com O Guarani, sua obra foi considerada por muitos críticos como o primeiro grande romance brasileiro.


O índio na Literatura

José de Alencar encontrou na literatura dos antigos cronistas coloniais, como Gabriel Soares de Souza e Pero Magalhães Gandavo, as primeiras impressões dos europeus ao se depararem com a natureza e o índio brasileiros. Nas páginas desses autores, José de Alencar já procurava um tema para desenvolver sua literatura. Antes de escrever O Guarani, porém, discorreu muito nas páginas do Diário do Rio de Janeiro sobre o papel do índio na Literatura brasileira: "Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto de O Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais buscava com sofreguidão um tema para o meu romance; ou, pelo menos, um protagonista, uma cena e uma época."


Para lembrar
José de Alencar esteve pensando na questão do índio – e discutiu-a nos jornais – durante boa parte do ano que antecedeu a sua primeira incursão pelo terreno indianista.


"Digo-o por mim: se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e suas belezas, se quisesse compor um poema nacional, pediria a Deus que me fizesse esquecer por um momento as minhas ideias de homem civilizado. Filho da natureza, embrenhar-me-ia por essas matas seculares; contemplaria as maravilhas de Deus, veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a lua deslizar-se no azul do céu; ouviria o murmúrio das ondas e o eco profundo e solene das florestas."

As primeiras páginas de O Guarani já denunciam que José de Alencar procurava colocar suas ideias em prática ao seguir o curso do rio Paquequer. 


Sucesso de público

Além de indianista, O Guarani é, antes de tudo, um romance histórico que traz personagens construídos com base em figuras que realmente existiram. Caso, por exemplo, de D. Antônio de Mariz e seu filho Diogo, transformados pela imaginação de José de Alencar em verdadeiros cavaleiros medievais. A descrição da fortaleza de D. Antônio, por exemplo, mescla detalhes da arquitetura colonial brasileira à imagem perfeita de um castelo medieval. A relação de D. Antônio com os aventureiros que o servem é a de vassalagem feudal, com direito até a juramento de eterna lealdade. As bandeiras são apresentadas seguindo a imagem romantizada das cruzadas medievais. Ou seja, o Brasil de 1604 é descrito como um espelho da Europa medieval.

Uma nova forma

O sucesso da obra tem seu mérito, em parte, na forma como a história é apresentada. O texto de O Guarani em muito se assemelha ao trabalho dos escritores de telenovelas atuais. Da mesma forma que esses escritores, Alencar colhia as opiniões entre seu públicoleitor para dar continuidade ao romance. Mais de uma vez, mudou o destino de seus personagens por conta dos palpites e das reclamações que recebeu. Escrevia ouvindo seus leitores. Por fim, deu a eles uma história romântica que, segundo o próprio Alencar, era tudo o que o público queria: um enredo com um namorado, uma moça bonita, um homem mau e diversas figuras de menor importância. A respeito do sucesso da obra, Alfredo de Taunay, futuro visconde e autor de Inocência, escreveu em suasReminiscências:

"O Rio de Janeiro em peso, para assim dizer, lia O Guarani e seguia comovido e enlevado os amores tão puros e discretos de Ceci e Peri e com estremecida simpatia acompanhava, no meio de perigos e ardis dos bugres selvagens, a sorte vária e periclitante dos principais personagens do cativante romance [...]"

Os personagens amantes

A corrente indinanista à qual O Guarani pertence faz do índio Peri um herói romântico.

É num ambiente romanticamente selvagem que surge Ceci, a princesa loira, pura e ingênua. Para ela convergem três formas de amor: o amor carnal de Loredano, o amor cortês de Álvaro e o amor religioso de Peri. Loredano, na verdade frei Ângelo di Luca, é o vilão da história, personificando todo o mal. Desertor da religião, ganancioso, traidor, deseja Ceci sexualmente. Cavalheiro, nobre, Álvaro ama Ceci de forma respeitosa, como futura esposa e lhe faz a corte com discrição. Termina por se envolver com a mestiça Isabel, filha de D. Antônio com uma índia. Isabel acaba-se tornando um dos personagens mais complexos do romance, tanto por seu amor por Álvaro, quanto pelo complexo de inferioridade e pelo preconceito que carrega devido à mestiçagem. Peri é o grande herói do romance. Capaz de saltar como uma onça, enfrentar um poço cheio de cobras, arrancar uma palmeira com os braços, Peri é muito mais do que um índio. Nas palavras de seu criador, "é um ideal, que o escritor intentou poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça".


Prisioneiro do amor

Falando sempre por metáforas tiradas da natureza, Peri apresenta-se como o índio que se dedica inteiramente a Ceci, cujo nome, na realidade Cecília, é reduzido carinhosamente por ele, para quem tem o significado de dor, sofrimento. Peri passa a idolatrar sua "senhora" ao identificá-la com uma imagem de Nossa Senhora, que deslumbrara em meio a um incêndio. Por Ceci, Peri abandona sua tribo, sua língua e, por fim, sua religião. Como se fosse prisioneiro de uma cantiga de amor medieval, vive uma eterna vassalagem amorosa, idolatrando a sua senhora.

Fontes transformadoras

A fértil imaginação transformadora de José de Alencar é alimentada também pelos textos dos cronistas coloniais que tanto o fascinaram na juventude, na cidade pernambucana de Olinda. Ele transcreve, de maneira quase literal, as descrições dos índios feitas, por exemplo, por Pero Magalhães Gandavo ou Soares de Souza, mas vai acrescentando-lhes detalhes dramáticos de grande efeito. 

Para lembrar
O ritual antropofágico dos aimorés segue rigorosamente a descrição de Pero Magalhães Gandavo, mas José de Alencar acrescenta-lhe o brilho do auto-envenenamento de Peri. 

Para salvar sua senhora, o nosso herói imagina fazer-se devorar pelos aimorés, que ingeririam também o veneno que traz em seu corpo.


O exagero imaginativo do romance foi reconhecido, anos depois, pelo próprio Alencar: "Em O Guarani, derrama-se o lirismo de uma imaginação moça, que tem como a primeira rama o vício da exuberância; por toda a parte linfa, pobre de seiva, brota em flor ou folha".


Um romance interativo

Para José de Alencar não foi fácil o período em que escreveu O Guarani. O leitor que acompanhava as aventuras do índio Peri não imaginava as dificuldades do trabalho do escritor que conduzia o herói pelas matas selvagens, só reveladas pelo próprio José de Alencar alguns anos depois:


"No meio das labutações do jornalismo, oberado não somente com a redação de uma folha diária, mas com a administração da empresa, desempenhei-me da tarefa que me impusera, e cujo alcance eu não medira ao começar a publicação, apenas com os dois primeiros capítulos escritos."


Por isso, o leitor atento poderá perceber que realmente existe uma diferença entre os dois primeiros capítulos e o restante do livro. Descritivos, lentos, chegam a desanimar o leitor mais ávido por ação. Sutil, José de Alencar desculpa-se ao final do 
segundo capítulo:


"Demorei-me em descrever a cena e falar de algumas das principais personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se compreendam os acontecimentos que depois se passariam. Deixarei porém que os outros perfis se desenhem por si mesmos."


É o que acontece. O resto do romance desenvolve-se de maneira muito mais veloz. A narrativa vai se tornando cada vez mais ágil à medida que os personagens vão entrando em ação. A rapidez desses capítulos reflete o seu processo de criação: 


"Acordava por assim dizer na mesa de trabalho e escrevia o resto do capítulo começado no dia antecedente para enviá-lo à tipografia. Depois do almoço, entrava por novo capítulo, que deixava em meio. Saía então para fazer algum exercício antes do jantar no Hotel de Europa. À tarde, até nove ou dez horas da noite, passava no escritório da redação, onde escrevia o artigo editorial e o mais que era preciso."


Vida e obra

Alma brasileira



José de Alencar nasceu em 1829, na cidade de Mecejana, Ceará. Filho de um ex-padre que se tornou presidente da Província do Ceará e senador do Império, aos 9 anos de idade, o jovem Alencar mudou-se com a família para a cidade do Rio de Janeiro. Em 1844, quando tinha 15 anos, matriculou-se nos cursos preparatórios para a Faculdade de Direito de São Paulo. Foi quando leu o recém-publicado romance A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, obra que muito o influenciaria na decisão de tornar-se romancista. Sua produção literária inclui romances, peças para teatro e textos não-ficcionais.
Sua obra retrata tanto o mundo selvagem e a miscigenação do índio com o branco, como a sociedade burguesa de sua época. Seus primeiros textos foram publicados em revistas estudantis. Na época, cursava a Faculdade de Direito em São Paulo. Em 1848, transferiu-se para a Faculdade de Direito de Olinda, em Pernambuco, onde na velha biblioteca do Mosteiro de São Bento, encontrou a literatura dos antigos cronistas coloniais, como Gabriel Soares de Sousa e Pero Magalhães Gandavo. Anos mais tarde, ainda se recordava da emoção que fora a descoberta desses autores do século XVI, que nos legaram as primeiras impressões dos europeus ao encontrarem a natureza e o índio do Brasil, em cujas páginas já procurava um tema para desenvolver em sua própria literatura. Voltando a São Paulo, após contrair tuberculose, José de Alencar formou-se em Direito. Era o final de 1850. No ano seguinte, retornou à capital do país e lá começou a advogar. Não se esqueceu, porém, da Literatura. Em 1854, começou a escrever uma seção diária no Correio Mercantil, intitulada "Ao Correr da Pena", na qual comentava assuntos variados do cotidiano do Rio de Janeiro e do país. 

Os textos escritos por José de Alencar no Correio Mercantil, leves e com temática do dia a dia da sociedade, podem ser considerados os precursores da crônica moderna, em que se sobressaíram, no século seguinte, escritores como Rubem Braga, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade. Em 1855, o autor destacou-se como um dos fundadores do jornal O Diário do Rio de Janeiro, do qual foi editor-chefe. Nesse ano ainda, publicou os textos que o tornariam conhecido em todo o país. No final de 1856, decidiu publicar um folhetim como "brinde" aos leitores do jornal. Dessa forma, iniciou sua carreira de romancista, época em que publicou o curto romance Cinco Minutos, recebido com grande simpatia por seus leitores. Estimulado pelo sucesso do primeiro, logo iniciou o segundo,A Viuvinha, cuja publicação teve de ser interrompida quando, por engano, um companheiro seu publicou o final da história na Revista de Domingo. Foi quando também começou a publicar O Guarani. Surgiu, assim, na Literatura brasileira uma nova "estrela colorida brilhante" – lembrando as palavras de Caetano Veloso na canção "Um Índio". Uma estrela que há de escrever, "numa velocidade estonteante", os capítulos do romance do qual descerá um índio "mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias" – o apaixonado Peri.

Entre 1857 e 1870, além de publicar diversos romances, entre eles Lucíola (1862) e Iracema (1865), José de Alencar elegeu-se várias vezes deputado, tendo sido ainda ministro da Justiça entre 1868 e 1870. Dedicou-se também ao teatro, escrevendo peças como O Demônio Familiar (1857), As Asas de um Anjo (1858) e A Mãe (1860), entre outras peças. Em 1870, abandonou a política, ressentido, após ser preterido para a vaga de senador. Iniciou, então, uma fase de recolhimento: poucos amigos e nenhum sorriso. Nesse período, intensificou sua produção novelística, agora guiada pelo projeto de descrição do Brasil, anunciado no prefácio do livro Sonhos d'Ouro (1872). Em 1875, publicou Senhora, um de seus romances mais complexos. Ao morrer, em 1877, era considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos, principalmente por Machado de Assis, seu amigo e mais fiel admirador, que logo o destronaria. Para Machado, "nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira". Em seu projeto de descrição global do Brasil, José de Alencar encaixou seus romances, dividindo-os em quatro grupos, de acordo com os temas neles abordados:

• Romance urbano, como Lucíola Senhora;
• Romance regionalista, como O Gaúcho e O Sertanejo;
• Romance indianista, como Iracema e Ubirajara;
• Romance histórico, como A Guerra dos Mascates e As Minas de Prata.

A classificação atribuída por José de Alencar à sua obra seria postumamente revista pela crítica, que considerou O Guarani e Iracema obras históricas e ao mesmo tempo indianistas.

Fonte: http://vestibular.uol.com.br

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