segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 21 - O Primo Basílio


Retratando a vida cotidiana, os amores e as traições da pequena burguesia de Lisboa, Eça de Queirós faz uma crítica demolidora da sociedade portuguesa nesta obra-prima da Literatura portuguesa.

Publicada em 1878, O Primo Basílio é uma obra fundamental do Realismo naturalista português. O livro inova a criação literária da época com uma crítica demolidora e sarcástica dos costumes da pequena burguesia de Lisboa. Eça de Queirós ataca uma das instituições mais sólidas: o casamento. Com personagens despidos de virtude, situações dramáticas geradas a partir de sentimentos fúteis e mesquinharias, lances amorosos com motivações vulgares e medíocres – apesar de tudo isso, ao mesmo tempo em que ataca, desperta o interesse da sociedade lisboeta. Embora o adultério fosse tema já trabalhado pelo Romantismo, Eça de Queirós explora o erotismo quando detalha a relação entre os amantes. Inova também ao incluir diálogos sobre homossexualismo. O autor, que já mostrara sua opção por uma literatura ácida e nada sentimental em O Crime do Padre Amaro, cria personagens fisicamente decadentes – cheios de doenças e catarros – e de comportamento sexual promíscuo.

Para lembrar
O Primo Basílio é uma obra naturalista e realista. A escola realista propõe uma criação literária apoiada na análise objetiva da realidade. O narrador aparece como um observador imparcial, que vê os acontecimentos com neutralidade e que domina as informações sobre o contexto no qual o enredo acontece. O Naturalismo traz uma preocupação a mais: tenta introduzir o método científico na obra literária e, com isso, intensifica e amplia as tendências básicas do Realismo.


Cenário 

O continente europeu passava por um processo de transformação radical. A Revolução Industrial iniciada no século anterior, na Inglaterra, provocou uma industrialização acelerada em vários países. As cidades cresciam rapidamente, camponeses transformavam-se em operários urbanos e a vida cultural ia se diversificando. Londres, Berlim, Viena e principalmente Paris eram os centros de um vigoroso processo criativo. Enquanto isso, Portugal mantinha-se apegado às glórias do passado. O país não chegou a desenvolver uma burguesia empreendedora e capitalista, nem uma elite intelectual significativa que fizesse desenvolver as artes e as ciências. A elite de Lisboa vivia apegada às glórias coloniais passadas. De costas para o futuro, vivia centrada em sua vida sem perspectivas.

Eça de Queirós faz parte de uma geração de jovens intelectuais, centrada em Coimbra, que reagem contra o atraso do país. Eles criticam o Romantismo como um sinônimo desse atraso. E com seus Realismo e Naturalismo pretendem incorporar à Literatura os métodos científicos próprios das ciências naturais. O autor disseca essas deformações da sociedade lusitana e explica sua fonte de pesquisa e inspiração neste trecho de uma carta enviada a Teófilo Braga, seu amigo e colega, também um doutrinário do Naturalismo e futuro presidente da República portuguesa: 


"Mas a verdade é que eu procurei que os meus personagens pensassem, decidissem, falassem e atuassem como puros lisboetas, educados entre o Cais do Sodré e o Alto da Estrela; não lhes daria nem a mesma mentalidade, nem a mesma ação se eles fossem do Porto ou de Viseu; as individualidades morais variam de província a província."


Eça também observa que não ataca a família enquanto instituição, mas sim "a família lisboeta, produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem e, mais tarde ou mais cedo, centro de bambochata".


Para lembrar!
O Primo Basílio apresentava-se como uma lente de aumento sobre a intimidade das famílias "de bem" de Lisboa de meados do século XIX. Representa um dos primeiros momentos de reflexão sobre o atraso da sociedade portuguesa em um mundo profundamente transformado pela Revolução Industrial e pelo desenvolvimento tecnológico. 


Enredo

O pano de fundo da narrativa de O Primo Basílio é um caso de adultério. Já no primeiro capítulo, o autor lança as sementes do conflito que dá pretexto para o livro. Descreve o marido que viaja, contrariado, a trabalho; a esposa que descobre que o primo e ex-noivo revisita a cidade e as lembranças que a notícia evoca. Introduz a criada Juliana, ressentida e frustrada, que terá um papel decisivo no desfecho trágico do romance.

No segundo capítulo, o autor apresenta as figuras secundárias, enfocadas durante breves visitas dominicais à casa de Luísa e Jorge. A relação amorosa clandestina mantida por Luísa e Basílio é descoberta pela criada que, de posse de uma carta dos amantes, chantageia a patroa. Abandonada pelo amante, que foge para Paris, Luísa não suporta a tensão e morre.

Personagens

Os personagens que recheiam a obra de Eça de Queirós na sua fase naturalista, como em O Primo Basílio, são planos, ou seja, são o oposto dos personagens de grande intensidade interior e psicológica – os personagens esféricos. Na Literatura brasileira, Capitu (Dom Casmurro), de Machado de Assis, cheia de sentimentos complexos, é a mais esférica de nossos personagens femininos. Em O Primo Basílio, toda a intensidade é reservada para a trama. Os personagens apenas são por ela envolvidos e arrastados. Ou seja, a realidade objetiva é que molda e define a vida dos homens. 

Para lembrar
É próprio do Naturalismo modelar personagens de fora para dentro, a partir de circunstâncias e valores sociais que determinam suas reações e seus comportamentos, às vezes tão esquemáticos que mais parecem caricaturas.


Luísa, uma burguezinha da Baixa  Na descrição que o próprio Eça de Queirós faz na carta a Teófilo Braga, Luísa é "a burguezinha da Baixa" (Lisboa, Cidade Baixa): uma senhora sentimental, mal-educada, sem valores espirituais ou senso de justiça. É lírica e romântica, ociosa e "nervosa pela falta de exercício e disciplina moral". Luísa é esposa de Jorge, engenheiro de minas que ela conheceu após o abandono e rompimento (por carta) do noivado com o primo Basílio. Sua vida tranquila de leitora de folhetins é alterada pela viagem do marido e o retorno do primo a Portugal. 


O motivo que a leva a se entregar a Basílio, de acordo com as reflexões de Eça, nem ela sabia. Uma mescla da falta do que fazer com a "curiosidade mórbida em ter um amante, mil vaidadezinhas inflamadas, um certo desejo físico...". O drama em que se enreda é inexplicável para o próprio personagem, como se vê neste trecho:


"E ela mesmo, por fim? Amava-o ela? Concentrou-se, interrogou-se... Imaginou casos, circunstâncias: se ele a quisesse levar para longe, para França, iria? Não! Se por acaso, por uma desgraça enviuvasse, antevia alguma felicidade casando com ele? Não. Mas então!... e como uma pessoa que destapa um frasco muito tempo guardado, e se admira vendo o perfume evaporado, ficou toda pasmada de encontrar o seu coração vazio."


Basílio, um maroto sem paixão O primo e ex-noivo que retorna a Portugal na ausência do marido de Luísa é para Eça de Queirós "um maroto, sem paixão nem a justificação de sua tirania, que o que pretende é a vaidadezinha de uma aventura e o amor grátis". 

Malicioso e cheio de truques para atrair a amante explorando a sua vaidade fútil, Basílio compara a fidelidade conjugal a uma demonstração de atraso das mulheres de Lisboa frente aos hábitos supostamente liberais e modernos das senhoras de Paris – todas com seus amantes, conforme assegurava o primo. 

Desprovido de charme ou atributos mais sedutores, é o mais cínico dos personagens "conquistadores" de Eça de Queirós. Em momentos de maior dramaticidade, quando começam a enfrentar as consequências do adultério, o cinismo de Basílio fica mais evidente: ele pensa apenas que teria sido mais vantajoso trazer consigo uma amante de Paris.

Juliana: ódio e chantagem  A criada Juliana faz desmoronar o mundo de Luísa ao chantageá-la com cartas roubadas. É a figura que aparece com alguma intensidade interior, destoando um pouco das razões fúteis que movimentam os demais personagens.

Ela é conduzida pela revolta (não suporta sua condição de serviçal), pela frustração (fracassou na tentativa de mudar de vida), pelo ódio rancoroso contra a patroa (ódio, na verdade, contra todas as patroas que a fustigaram por 20 anos). 

Assim como Basílio, Juliana tentará tirar proveito das circunstâncias, reunindo provas do adultério para fazer chantagem. Mas ela pretende mais do que dinheiro – que exige sem sucesso de Luísa –, ela quer a desforra. E os recursos que utiliza levarão ao definhamento físico e emocional da patroa até o desfecho da história.

Jorge, o marido traído → Todo o drama iniciado com o roubo das cartas se deve à tentativa de Luísa de impedir que Jorge saiba do adultério. Com aparições curtas no romance, sua presença se faz sentir pelo papel social que representa: é o marido. E a forma como poderá reagir à infidelidade é especulada pelo narrador por meio de outro personagem, de forma metalingüística. Ernestinho Ledesma, autor medíocre que prepara uma peça teatral sobre um caso de adultério, pede a Jorge uma opinião sobre o final de sua obra. Um marido deve matar a mulher adúltera? 



Personagens secundários

Os personagens secundários completam o quadro social lisboeta. O Conselheiro Acácio, frequentador do círculo próximo de Luísa, um dos mais citados e conhecidos personagens de Eça, é o intelectual vazio. Sua habilidade em dizer o óbvio com empáfia deu origem à expressão "verdades acacianas". Joana é a cozinheira que enfrenta Juliana por dedicação à patroa; Dona Felicidade é a de "beatice parva de temperamento irritado". E também há, "às vezes, quando calha, um pobre bom rapaz" – Eça refere-se a Sebastião, que se propõe a recuperar as cartas tomadas pela criada. Na carta a Teófilo Braga, Eça assegura: "Eu conheço 20 grupos assim formados. Uma sociedade sobre essas falsas bases não está na verdade: atacá-las é um dever".


Estilo e linguagem

A obra de Eça adapta o texto literário ao ritmo e à modulação da língua falada. Assim, rejuvenesce a linguagem literária, mesclando-a com recursos de abordagem mais próximos do jornalismo.


Para lembrar
O autor afasta-se do uso de frases extensas e sobrecarregadas. Esbanja habilidade para expressar-se em sequências de frases curtas, cheias de ritmos e significados. Usa e abusa da descrição minuciosa, quase obsessiva, do espaço físico e da sociedade, explicando cada personagem a partir de seu contexto socioeconômico.


Detalhismo

É notável o esmero detalhista do autor na descrição de uma confeitaria, neste trecho extraído do capítulo IV, em que combina elementos gerais e particulares, objetividade e subjetividade:


"Estavam parados ao pé da Confeitaria. Na vidraça, por trás deles emprateleirava-se uma exposição de garrafas de malvasia com os seus letreiros muito coloridos, transparências avermelhadas de gelatinas, amarelidões enjoativas de doces de ovos, e queques de um castanho-escuro tendo espetados cravos tristes de papel branco ou cor-de-rosa. Velhas natas lívidas amolentavam-se no oco dos folhados; ladrilhos grossos de marmeladas esbeiçavam-se ao calor; as empadinhas de marisco aglomeravam suas crostas ressequidas. E no centro, muito proeminente numa travessa, enroscava-se uma lampreia de ovos, medonha e bojuda [...]".


Para lembrar
A prosa do autor caracteriza-se por ironia fina, humor, caricaturismo na composição dos personagens, paródia, senso de contraste, espírito crítico e, muitas vezes, grande lirismo na descrição da natureza.


Fotografia lírica dos ambientes

Eça resgata a dimensão da prosa poética na "fotografia" meticulosa e lírica que faz dos ambientes. Observe essas características no trecho a seguir: 


"Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma certa tranquilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve, o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora [...] Foi ver-se ao espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento úmido no olhar; seria verdade então o que dizia Leopoldina, que "não havia como uma maldadezinha para fazer a gente bonita?" Tinha um amante, ela!"

Visão crua dos personagens


O narrador na terceira pessoa é onisciente. Eça deixa a vulgaridade de Basílio transparecer nos comentários que o primo faz sobre suas viagens e nos galanteios à prima, mas prefere descrever a cafajestice do conquistador retratando os pensamentos grosseiros de Basílio.

A combinação da leveza e do brilho das descrições com o relato grosseiro da realidade é outra marca estilística de Eça de Queirós. Ele opõe a expectativa romântica de Luísa e a ironização de suas idealizações ao descrever as atitudes grosseiras do amante Basílio. Bem ao gosto do Naturalismo, compara seres humanos com animais dominados por seus instintos, definindo a criada Juliana como uma loba.


Para lembrar
O plano exterior de O Primo Basílio predomina sobre o plano interior. O exagero descritivo dos ambientes reforça e complementa a fragilidade psicológica dos personagens, que nada têm de admirável. Emoções, sensações e desejos surgem no texto como ações externas ao personagem, como o trecho que descreve o impulso extraconjugal de Luísa:

"Mas ao mesmo tempo uma curiosidade intensa, múltipla, impelia-a, com um estremecimentozinho de prazer. 
Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos!"


Uma obra naturalista

O Realismo/Naturalismo ou simplesmente Naturalismo é um movimento estético-literário influenciado pelas transformações científicas, filosóficas e sociais do século XIX. 


Anote!
Ainda sob o efeito da Revolução Industrial, misturava o otimismo com o progresso tecnológico e a perplexidade com as tensões sociais, as doenças e a miséria. Esse mundo não correspondia mais ao universo virtuoso da literatura romântica. Uma nova literatura influenciada pelo positivismo procurava métodos mais seguros, menos subjetivos e sentimentais para expressar a realidade.


O Naturalismo de Eça

Segundo palavras do próprio autor, "o Romantismo em lugar de estudar o homem, inventava-o. Hoje, o romance estuda-o na sua realidade social. [...] Toda a diferença entre o Idealismo e o Naturalismo está nisto. O primeiro falsifica, o segundo verifica". 

A principal influência literária da fase naturalista de Eça de Queirós é atribuída aos escritores franceses Émile Zola, maior expoente do Naturalismo, e Gustave Flaubert, cuja obra lhe apontou os caminhos de saída da literatura romântica. Madame Bovary foi o exemplo apresentado por Eça na conferência do Cassino Lisbonense, em 1871.
Narrativa neutra 

O Naturalismo provoca mudanças estilísticas no romance. Esses elementos "científicos" tornam-se mais importantes do que a interioridade ou subjetividade dos personagens. A origem social, educação e influências externas ganham ênfase determinantes, como se observa em O Primo Basílio. Novos recursos são incorporados à linguagem, como termos e explicações científicos para expressar a fragilidade da condição humana, com suas doenças e seus vícios. A Literatura é, além disso, revigorada com a introdução de vocabulário e sintaxe da linguagem oral. Na técnica narrativa, predomina o discurso indireto.



Anote!
No Naturalismo, o homem é observado como um animal que tem o comportamento determinado pelo meio ambiente, pelas circunstâncias que o pressionam e pela hereditariedade.


Vida e obra

Entre a boemia e a Literatura

Eça de Queirós é o mais importante romancista português do século XIX.

Foi por causa de um extenso e polêmico artigo de Machado de Assis, publicado em 1878 na Revista Cruzeiro, do Rio de Janeiro, que Eça de Queirós ficou conhecido nos meios literários brasileiros. Machado reprovava em Eça a falta de consistência de seus personagens, o predomínio das sensações físicas em detrimento das emoções. O alvo de Machado era o Naturalismo, mas ajudou a divulgar o autor português e, dizem os críticos, acabou influenciando-o. 

José Maria Eça de Queirós (1845-1900) nasceu em Póvoa do Varzim, em Portugal. Concebido antes do casamento dos pais, que mais tarde tiveram outros filhos, só foi reconhecido oficialmente como filho do juiz de Direito José Maria d'Almeida Teixeira de Queirós aos 40 anos. Com a morte dos avós paternos, que o acolheram, foi estudar no colégio interno na cidade do Porto. Lá, conheceu Ramalho Ortigão, que lhe ensinou o francês e a gostar de Literatura. Juntos escreveram o romance O Mistério da Estrada de Sintra (1871) e As Farpas, jornal satírico dirigido por Ortigão. Em sua estreia, Eça era fortemente influenciado pelo Romantismo. 

Aos 16 anos, foi cursar Direito na Universidade de Coimbra, o principal centro intelectual de Portugal. Na universidade, aproximou-se do grupo de estudantes liderado pelo poeta socialista Antero de Quental, também integrado por Teófilo Braga. 
Eça prefere a vida boêmia às polêmicas intelectuais que agitam a sociedade portuguesa, mas não deixa de se alinhar com aqueles que criticam a paralisia cultural do país. Aos 21 anos, muda-se para a capital e publica folhetins românticos para divertir a burguesia. Obtém pouco sucesso como advogado e aceita o convite para dirigir um semanário de província, o Distrito de Évora

Em 1868, liga-se ao Cenáculo, o grupo de Antero de Quental. No ano seguinte, visita o Canal de Suez e o Egito. Na volta, passa em primeiro lugar num concurso para o serviço diplomático português. Antes de ser nomeado, vive um ano na provinciana Leiria, onde escreve O Crime do Padre Amaro, seu livro mais polêmico. Em Lisboa, participa das conferências do Cassino Lisbonense, ministrando a palestra "O Realismo como Nova Expressão de Arte", em que defende a necessidade de a arte retratar e revolucionar a sociedade burguesa. Em 1873, muda-se para Havana, em Cuba, como cônsul. Faz uma viagem oficial prolongada aos Estados Unidos e, em 1874 , vai morar na Inglaterra, onde escreve O Primo Basílio. O livro A Relíquia é escrito em 1887. Casa-se aos 40 anos com Emília de Castro Pamplona, com quem tem quatro filhos. Morre em agosto de 1900 em Paris, aos 55 anos.


Fonte: http://vestibular.uol.com.br

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