segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Análise 15 - Manuelzão e Miguilim


As duas narrativas do livro Manuelzão e Miguilim pertenciam ao volume Corpo de Baile, lançado em 1956. Essas duas histórias espelham um começo e um fim de vida: à infância de Miguilim, com sua descoberta do mundo, contrapõe-se a velhice que Manuelzão sente chegar de repente. Em ambos os casos, assim como em toda a obra de João Guimarães Rosa, a linguagem deixa de ser um meio de expressão para reinar absoluta como um fim em si mesma.

Rosa e o Modernismo 

A obra de Guimarães Rosa tem início na terceira fase do Modernismo e se impõe como um marco na evolução da literatura brasileira. Os textos regionalistas até então costumavam abordar os problemas brasileiros de uma maneira superficial, transportando para a literatura diversos preconceitos. Nesse aspecto, além de Guimarães Rosa, são também exceções Graciliano Ramos e José Lins do Rego. 

O regionalismo de Guimarães Rosa deixa de dar ênfase à paisagem para focalizar o ser humano em conflito com o ambiente e consigo próprio. Dessa maneira, as personagens revelam tanto suas particularidades regionais como sua dimensão universal, ou seja, o que elas têm em comum com o restante da humanidade.

A valorização da cultura sertaneja num momento histórico em que predominava um discurso desenvolvimentista coloca o escritor na contramão da literatura brasileira que, praticamente desde seu início, defendeu a modernização do país. Por trás da atitude de Guimarães Rosa está a percepção de que o progresso condenaria ao silêncio o mundo dos contadores de histórias.

"Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narrar estórias corre por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens."


Anote!
É possível comparar as diferentes relações que Guimarães Rosa e Graciliano Ramos têm com suas personagens e com o ambiente que elas habitam. Graciliano Ramos aparece como uma consciência crítica, ajudando as personagens a enxergar a miséria de sua condição material e a exploração a que estão sujeitas. Guimarães Rosa tem uma relação de simpatia e identificação com as personagens e a paisagem.

O sertão e o mundo 


"Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos [...] O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte."


Ambiente de toda a obra de Guimarães Rosa, o sertão aparece como um lugar político e econômico, mas também como um lugar metafórico e metafísico, refletindo as perturbações interiores das personagens e seus grandes questionamentos. Mais do que um lugar no espaço, entretanto, o sertão rosiano é uma região criada na linguagem, como observou o crítico Antonio Cândido. 

Regional e universal

Em Guimarães Rosa, os elementos próprios do sertão são apenas condutores para uma abordagem dos grandes problemas do homem. Suas estórias extraem do regional a elaboração de temas universais, revelando uma visão global da existência: indagações sobre o destino, o significado da vida e da morte, a existência ou não de Deus etc. 

Revolução na linguagem

"A música da linguagem deve expressar o que a lógica da linguagem obriga a crer [...]. O melhor dos conteúdos de nada vale, se a linguagem não lhe faz justiça."


A maior inovação nos livros de Guimarães Rosa é a linguagem: criativa, que explora a sonoridade das palavras, incorpora a fala regional, cria termos adaptando expressões de outras línguas. Essa novidade obriga o leitor a refletir sobre o significado das palavras para compreender a nova dimensão dada a conteúdos já conhecidos.


Sobre esse aspecto da obra de Rosa, o professor Eduardo Coutinho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esclarece: "Como tudo na vida, as formas da linguagem também envelhecem e se tornam completamente inexpressivas após uso prolongado: palavras perdem o seu significado originário, expressões se tornam obsoletas, construções sintáticas inteiras caem em desuso e são substituídas por outras. Cabe, então, ao escritor, consciente de sua missão, refletir sobre cada palavra ou construção que utiliza e fazê-la recobrar sua energia primitiva, desgastada pelo uso. Em outras palavras, ele tem que revitalizar a linguagem". 

Anote!
A fala do povo é utilizada na obra de Guimarães Rosa como linguagem literária, aparecendo não só na fala do sertanejo, mas na própria voz do narrador. Assim, o autor rompe com a tradição em que o narrador escreve "certo" e as personagens falam "errado". "Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um estilo próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros."


Trânsito livre da prosa à poesia

Guimarães Rosa aboliu as fronteiras entre prosa e poesia: seus textos são sempre em prosa, mas apresentam inúmeras características que se costumam considerar próprias da poesia, como as rimas, aliterações, onomatopeias etc. É certamente reflexo disso o fato de que as duas narrativas que constituem o livro Manuelzão e Miguilim ("Campo geral" e "Uma estória de amor") são anunciadas no índice como poemas, porque para Guimarães Rosa importa tanto o que é dito (conteúdo) quanto como é dito (forma).



Mesmo a pontuação em seus textos não desempenha uma função ortográfica, mas estética, procurando fazer a escrita se aproximar do ritmo da fala, com travessões, reticências, exclamações, interrogações e, muitas vezes, vírgulas que separam sujeito e predicado, o que evidencia o rompimento do autor com os padrões gramaticais tradicionais, para aderir a uma estética da liberdade.

É importante ressaltar, no entanto, ainda com Eduardo Coutinho, que criando novas formas para a língua portuguesa, Guimarães Rosa "não ultrapassa, em momento algum, as barreiras impostas pela sua estrutura".

Trabalhador detalhista, Rosa estava atento a cada palavra que compunha suas criações e um testemunho de seu processo criativo são os inúmeros cadernos, cadernetas e diários em que anotava fragmentos de realidade que depois usaria na ficção: nomes de animais e plantas, expressões, nomes de lugares e pessoas, tudo.

"Você conhece os meus cadernos, não conhece? Quando eu saio montado num cavalo, por Minas Gerais, vou tomando nota de coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada espécie, tem voo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o voo de cada pássaro, em cada momento."


"Campo Geral"

Essa narrativa conta as experiências de uma criança: seu deslumbramento com a natureza, suas descobertas, alegrias e tristezas, seus questionamentos. Miguilim, o personagem central, é um menino de 8 anos que mora com a família no Mutum, região remota do sertão mineiro ("lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte"). É sensível e inteligente e se empenha em entender as pessoas e as coisas, mas é incompreendido. Somente o irmão Dito, que ele admira pela inteligência, é capaz de compreendê-lo e ajudá-lo em suas dúvidas. 

Experiência pessoal

Esse menino, Miguilim, tem muito da vivência pessoal do escritor, como este reconheceu mais de uma vez, em entrevistas: "Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagens, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas, numa combinação mais limpa e mais plausível, porque – como muita gente já compreendeu e falou – a vida não passa de histórias mal arranjadas e de espetáculos fora de foco".

Ao incluir fatos da infância em suas narrativas, Guimarães Rosa os reorganiza sob a ótica do adulto, o que se evidencia pelos comentários que acompanham as reminiscências, como se fossem uma consciência simultânea ao acontecimento. A crítica literária Cecília de Lara chama a atenção, no entanto, para o fato de que, embora o tempo e a compreensão da maturidade retoquem a imagem que se faz dos pais e dos adultos em geral, na obra de Guimarães Rosa essas personagens surgem como eram percebidas do ponto de vista da criança, nos momentos em que se manifesta a repressão dos grandes sobre os pequenos.

"Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, comentando, perguntando, comandando, estragando os prazeres. Recordando os tempos de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Já era míope e, nem mesmo eu, ninguém sabia disso."

Preocupações universais

Mesmo tratando do universo infantil, Guimarães Rosa aborda questões universais que preocupam qualquer ser humano: 

"Mãe, mas por que é, então, para que é, que acontece tudo?", ou "Dito, eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando..." ou "Mas Miguilim estava chorando simples, não era medo de remédio, não era nada, era só a diferença toda das coisas da vida".
Isso se torna possível sem comprometer a verossimilhança porque a infância em Guimarães Rosa não é um tempo aprisionado no passado, mas um estado de espírito, que se caracteriza pela disposição para a apreensão do mundo, pela capacidade de se admirar e se comover, como quando se vêem as coisas pela primeira vez. 


Anote!
O narrador é onisciente, em 3ª pessoa, mas os fatos são contados pelo ponto de vista de Miguilim, com quem o narrador se identifica. As demais personagens (a Mãe, o Pai, o Tio Terêz, a Vovó Izidra, os irmãos Dito, Tomezinho, Chica e Drelina, a agregada Mãitina e todos aqueles que vivem e passam pelo Mutum, além dos animais) aparecem misturadas às emoções e às reflexões da personagem central. 

Cinco episódios

Em "Campo geral", há cinco episódios principais: o relacionamento entre Pai, Mãe e Tio Terêz; a morte do Dito; a morte do Pai; a descoberta da miopia; e a despedida da família.

O relacionamento entre Pai, Mãe e Tio Terêz

Essa é a primeira experiência que marca o crescimento de Miguilim ("Ele bebia um golinho de velhice"): colocado no centro de um conflito entre o dever e a amizade, o garoto só encontra resposta para seu drama ("Dito, como é que a gente sabe certo como não deve de fazer alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo?") dentro da própria consciência. E então aparece o profundo senso moral de Miguilim, que conta a verdade ao tio sobre o bilhete: não pudera entregá-lo à Mãe porque aquilo não estava certo, apesar do apreço que tinha pelo Tio Terêz e da confiança que este depositava em Miguilim. "Miguilim chorava um resto e ria, seguindo seu caminhinho [...] andava aligeirado, desesfogueado, não carecia mais de pensar." 

A morte do Dito

A experiência da morte é vivida pela primeira vez com a perda do irmão e se incorpora à dolorida aprendizagem da infância ("as lágrimas quentes, maiores do que os olhos"). Agora o garoto está diante de uma tristeza irreversível, que assume uma dimensão trágica. A pouca experiência que ele tem não pode ajudá-lo a compreender esse novo sofrimento, imenso. Miguilim olha para a própria dor ("todos os dias que depois vieram eram tempo de doer") e para a atitude da mãe ("O carinho da mão de Mãe segurando aquele pezinho do Dito era a coisa mais forte neste mundo").

A morte do Pai

O conflito com o pai e o impulso de enfrentá-lo, quebrando todos os brinquedos, anunciam um grande crescimento ("Você está ficando homem, Miguilim..."). Nhô Bero é um homem muito infeliz, de temperamento impulsivo que, desesperado com as adversidades (a insuficiência do orçamento doméstico, a morte de Dito, a doença de Miguilim, as infidelidades da esposa), suicida-se depois de matar Luisaltino. A morte do pai, entretanto, é precedida pela certificação de que Miguilim é amado: "Pai chorava estramontado, demordia de morder os beiços. Miguilim sorriu. Pai chorou mais forte... Pai gritava uma braveza toda, mas por amor dele, Miguilim."

A descoberta da miopia

Durante toda a narrativa fica sugerida a miopia de Miguilim ("ele queria ver mais as coisas, todas, que o olhar não dava"; o pai "ralhava sempre, porque Miguilim não enxergava onde pisasse, vivia escorregando e tropeçando, esbarrando, quase caindo nos buracos"). Essa limitação física se reflete no comportamento da personagem, que tende a permanecer no medo e no sonho, até seu problema ser descoberto. 

Uma infinidade de medos, da noite, do dia, da morte, das almas do outro mundo, dos raios e trovões, do mato, dos animais, do rancor paterno, da maldade inconsequente dos familiares, marcam o desajuste de Miguilim com a realidade circundante. Também num momento de sugestão de sua miopia fica registrada a índole sonhadora: "Estou sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver."


Anote!
Esse episódio pode ser visto como uma metáfora do processo de aprendizagem, sob o impacto da primeira tomada de consciência das coisas, quando os objetos se iluminam e as cores se destacam. Agora, Miguilim tem condições de perceber os detalhes de tudo o que tem diante de si, o que se aplica tanto ao mundo concreto quanto ao mundo abstrato.

"Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo..."


A despedida da família

A despedida da família, no momento de ir para a cidade sob os cuidados médicos e educacionais do dr. José Lourenço, é também um momento de descoberta, pois, com os óculos do doutor, Miguilim pode finalmente saber se o Mutum é bonito, como dissera o forasteiro, ou feio, como não cansava de afirmar a mãe em sua tristeza.



"Por fim disse. Pediu. O doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim.E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis na primeira vereda. O Mutum era bonito!"


Recursos linguísticos

Para construir o universo infantil, são utilizados vários diminutivos, além do próprio nome do herói: pertim, pelourim, sozim, papelim, espim, lugarim, menorzim, ioioim, durim, xadrezim, direitim, demonim, bruxolim, barbim, passarim, beijim.
Os diminutivos aparecem também para expressar as dimensões reduzidas que a visão de Miguilim pode alcançar com as lentes: grãozinhos, pedrinhas, formiguinhas. 

A necessidade de transmitir a nova experiência também fica explícita no trabalho verbal: apontava, falava, contava. 

Em função das características físicas e psicológicas da personagem central, abundam verbos referentes à ação dos olhos: via, olhou, tinha visto. 

A sonoridade, o ritmo, as sutilezas da forma e do significado das palavras, que não são particularidades dessa obra, uma vez que fazem parte do eixo criativo do autor, podem ser percebidos aqui nos seguintes exemplos: 

• "doía muito demorado"; 
• "E o Dito dormia sem adormecer";
• "Miguilim desentendia de tudo, tonto, tonto";
• "E Miguilim desengolia da garganta um desespero";
• "Uai, Mãe, hoje já é amanhã?"; 
• "mas agora o Gigão parava ali, bebelambendo água na poça...";
• "O oõo das vacas".

Dentre os procedimentos que Guimarães Rosa normalmente utiliza para construir a linguagem de suas narrativas, em "Uma estória de amor" são priorizados os aspectos da oralidade, que tem uma importância central na estrutura desse conto. 

1. Provérbios

• "[...] cada um caça e coça." 
• "A vida não larga, mas a vida não farta."
• "Ah – alegria de pobre é um dia só: uma libra de carne e um mocotó... – como se diz."
• "Ouvido de boiadeiro, ouve o bufo e o berro inteiro."
• "Tinha-se que estar sempre com um olho no prato, o outro no mato."
• "Mais antes trabalhar domingo do que furtar segunda-feira." 

2. Onomatopeias

a) Imitando o trotar dos cavalos:

"Se esparramaram em despenque, morro a fundo, por todo lado: qualequal, qual e qual, qual-e-qual, qual-e-qual, qual-e-qual, qual, qual, qual, qual..."

b) Imitando a corrida do Cavaleiro e do Boi: 


"Tudo que podia o Boi: dêi, dêi, dêi, dêi, dêi, dêi, dêi, dêi... Tanto o Cavaleiro atrás: popóre, popóre, popóre..."

3. Rimas internas, prosa metrificada (redondilhas maiores), aliterações


"Esse boi que hei é um Boi Bonito: muito branco é ele, fubá da alma do milho; do corvo mais diferente, o mais perto do polvilho. Dos chifres, ele é pinheiro, quase nada torquesado. O berro é uma lindeza, o rasto bem encalcado." 


"O cavalo, cavalão, que engordava, só nos pastos, noite e dia. Desesperação do fazendeiro, filho do finado homem. Mais aquelas corridas vãs, a fama do Boi crescia. Sertão longe, se falava nesse Boi, que se prazia."

4. Repetições e enumerações


"Lá vêm da Cava da Grota, em sete pretos melroados, todos sete encapotados, clinudos, ventrilavados, os sete irmãos Belador. Lá vem um vaqueiro magro, outro gordo, outro mais magro, outro de cabelo comprido, da Fazenda do Reboo. No seu arlequim Merépa, lá vinha João Anacleto, com Pixo e Pingo Anacletos, dois filhos do sobredito, todos três do Siará, só [...]." 


"Antônios; Ascenço, Aroeira e Agarra-Tabica; Aziano, filho de Ázio; Arrudão; Alamiro Jó de Freitas. O Bó; Birinício; Bastião, do Brejo-Preto - montado num lionanco. Cérjo de Souza Vinagres. Duque; Dativo; Doêz; Domitilo Sem-Cabelo."

5. Identificação homem-natureza

Além da recriação da cultura oral, são utilizadas imagens que identificam o homem com os animais e com as árvores:

• "Estavam de bem, só que, em qualquer novidade, nesta vida, se carece de esperar o costume, para o homem e para o boi."
• "[...] A gente era sofrendo e tendo de aturar, que nem um boi [...]."
• "[mulheres acontecidas] eram gado sem marca [...]."
• "O povo trançando, feito gado em pastos novos."

• "Ativo e quieto, Manuelzão ali à porta se entusiasmava, público como uma árvore, em sua definitiva ostentação."
• "[...] O que era um indivíduo boiadeiro-gadeiro, teso feito um jequitibá-legal."
• "O povo – estavam como árvores do cerrado, respingados de sol." 


"Uma estória de amor"

Entre 19 e 29 de maio de 1952, Guimarães Rosa viajou pelo sertão de Minas Gerais, acompanhando uma boiada conduzida pelo vaqueiro Manuel Narde, o Manuelzão. Antes de deixarem a Fazenda Sirga, de propriedade de um primo do escritor, rumo à Fazenda São Francisco, foi realizada uma procissão e rezada uma missa, tal como acontece em "Uma estória de amor". Várias anotações dos cadernos de viagem A Boiada 1 e A Boiada 2 foram aproveitadas nesse conto: além dos participantes da viagem, que aparecem como personagens (Camilo José dos Santos, que "virou" o velho Camilo, e Francisco Barbosa, que "virou" Chico Bràabóz, são dois exemplos), a caracterização da fazenda e da capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro são quase retratos da realidade, como comprova uma foto da capela, tirada pela reportagem da revista O Cruzeiro, que acompanhou os dois últimos dias dessa viagem. 

Travessia

Quando Corpo de Baile foi publicado, o crítico Paulo Rónai escreveu, a respeito de "Uma estória de amor": 

"Em trilhos paralelos correm duas ações: a exterior, construída pela sequência da festa, a chegada dos convidados, o cerimonial do banquete, e a íntima, o embate de inquietações surdas no espírito de Manuelzão, torturado por ideias de vida falha, solidão, morte próxima. As duas ações chegam a remate ao eclodir inesperado na boca de um velho mendigo, de uma epopeia, milagre cuja vaga intuição integra o sentido da festa e apaga os tristes símbolos da vida incompleta de Manuelzão: o riacho que secou, o cavour que ele almejou por toda a sua existência e que estava fora de moda quando, afinal, ele se achou em condições de adquiri-lo." 

"Uma estória de amor" narra a festa de inauguração da capela construída por Manuelzão, administrador da fazenda Samarra, sertão mineiro. O tema central é a chegada da velhice: "Agora, sobressentia aquelas angústias de ar, a sopitação, até uma dor de cabeça; nas pernas, nos braços, uma dormência. A aflição dos pensamentos". Aos 60 anos, Manuelzão sente as limitações físicas que a idade impõe e aproveita a ocasião da festa para fazer um balanço de sua vida. O tema da velhice vem acompanhado de reflexões sobre o medo da morte. "Cada vez a gente tem mais medo [...] Um desânimo? Sério não sendo: mais só estados passageiros, dúvida de saúde [...] Desconfiava da morte. Mas ia sair com a boiada – sentia que para morrer, no caminho, no meio. Desmaginava." 

A festa acontece às vésperas de sair uma boiada e esse tema, que faz parte da vida de Manuelzão, está presente em sua maneira de ver as coisas e as pessoas: "Ele reparava, de supetão, na voz de comandar mil bois"; "Primeira missa ali; e este lugar de Samarra havia de crescer os cornos". Durante toda a narrativa, os homens são comparados com gado. Como o boi é símbolo de força pacífica e capacidade de trabalho, a professora e crítica literária Sandra Vasconcelos, da Universidade de São Paulo, vê nessa aproximação os vínculos do vaqueiro com a terra, sem desconsiderar, no entanto, que o trabalho sem trégua aliena esse homem e o coloca numa posição pouco diferente da do animal. 

Cerimônia de adeus

A festa, mais do que consagrar a capela, marca o momento em que Manuelzão toma consciência de si, de sua história e assume as rédeas de seu destino. Essa tomada de consciência só é possível com a intervenção das histórias contadas por Joana Xaviel e pelo velho Camilo. Essas histórias assinalam o cruzamento da experiência coletiva com a experiência individual e interferem no enredo à medida que, reconciliado consigo próprio, Manuelzão cede à passagem do tempo, ao fluxo da vida, e decide partir com a boiada, deixando o filho Adelço substitui-lo na fazenda. 

Dessa maneira, a festa é também uma cerimônia de adeus, que tem seu auge na recitação da Décima do Boi e do Cavalo pelo velho Camilo. O mundo das imagens interiores de Manuelzão se encontra com o universo da experiência coletiva e o caminho se ilumina subitamente, livre das dúvidas e angústias: "Festa devia de ser assim: o risonho termo e começo de tudo, a gente desmanchando tudo, até o feito com seu suor do trabalho de sempre; e sem precisar, depois, de tornar a refazer. Que nem com as estórias contadas. Chegava na hora a estória alumiava e se acabava". 

Sandra Vasconcelos atenta para o fato de que a festa proporciona um relaxamento das barreiras sociais, acolhendo num mesmo espaço fazendeiros abastados (como o senhor do Vilamão), sitiantes (como seu Vevelho), vaqueiros e gente pobre ou marginal (como João Urúgem, os ciganos, as "más mulheres"). A festa é um espaço de exceção, em que se praticam as mesmas ações de sempre, mas de forma concentrada, o que confere um novo significado a esses atos: comer, dançar, rezar, contar estórias, reunir boiada.

Concentração e dispersão

A festa promove um movimento de concentração de pessoas, bois e objetos para, ao fim de seus três dias de duração, "desfazer esse movimento através da dispersão daqueles que haviam se reunido para festejar a Santa", aponta Sandra Vasconcelos. Pequenos episódios de concentração e dispersão aparecem dentro do evento da festa, na colocação dos adornos, na procissão, no almoço, nas danças, na reunião da boiada. 

Por outro lado, o espaço real (a fazenda, a capela, o pátio, a cozinha) cede lugar ao espaço imaginário (a memória, o devaneio, o sonho), à medida que o lugar físico da festa é invadido pela interioridade de Manuelzão.

Assim como acontece com o espaço, o tempo da festa (presente) é invadido pelo tempo da memória (passado) e da expectativa (futuro). Os três tempos convergem, transformando-se em tempo subjetivo, que se alterna com o tempo linear da festa. 

O amor

A "estória de amor" referida no título diz respeito à suspeita de Manuelzão sobre um envolvimento amoroso entre o velho Camilo e Joana Xaviel. "Velho Camilo se sabe que tinha morado mais de uns seis meses na cafúa, com Joana Xaviel. De lá pegara a vir, dias em dias, à Samarra, pedir um feijãozinho, um sal. Daí muito se disse que aquilo não resultava bem, os dois, não dava. Somente se vê: eles necessitando de caridade, e vivendo assim num bem-estar? Nem não eram casados." 

Essa suspeita, entretanto, encobre a verdadeira história de amor que o vaqueiro gostaria de ter com Leonísia, se ela não fosse sua nora: "(...) e a Leonísia sendo tão bonita – mulher para conceder felicidade sincera", "A Leonísia devia de ter permanecido sempre exata donzela formosa, não se casado com ninguém". 

O conflito dessa paixão proibida, não-realizada, traz à tona a relação entre o vaqueiro e o filho, até ali, que aparece em trechos como: "Esse, filho natural, nascido de um curto acaso, no Porto Andorinhas, e ali deixado, Manuelzão não o vira, ao todo, mais de umas três vezes. E ele estava agora com perto de trinta anos, se chamava Adelço de Tal, e era um rapagão cabeludo, escurado, às vezes feio até, quando meio zarolho remirava; com Manuelzão nada se parecia". Ou: "Já o Adelço, esse, encobria de não se conhecer sua propensão, criatura de guardadas palavras e olhares baixos. Mas não enganava a Manuelzão: era mesquinho e fornecido maldoso, um homem esperando para ser ruim". 

Anote!
Utilizando o discurso indireto livre, o narrador onisciente dissolve a fronteira que o separa da interioridade da personagem central. Adota o ponto de vista de Manuelzão, muitas vezes mergulhando no caleidoscópio de reminiscências do vaqueiro e desnudando seu lado oculto: a fragilidade debaixo da aparência de força inabalável. Entretanto, embora privilegie Manuelzão, o narrador dá voz aos contadores de histórias, para que o povo que dá vida à festa possa ser ouvido.


Vida e obra de Guimarães Rosa


João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) em 27 de junho de 1908 e morreu em 19 de novembro de 1967, aos 59 anos, no Rio de Janeiro. 

Fascinado desde menino pelas línguas e pela natureza, acabou dando vazão a essas duas paixões em suas atividades profissionais: médico, diplomata e escritor.

Em 1930, se formou em Medicina, em Belo Horizonte, e exerceu a profissão no interior do Estado. Dizem que decidiu clinicar no sertão porque ali não havia concorrentes, mas de qualquer modo foi um médico dedicado e respeitado, famoso pela precisão dos diagnósticos. Já nessa época, escrevia contos para a revista carioca O Cruzeiro, mais pelo dinheiro do que pela arte.
O domínio dos idiomas espanhol, francês, inglês, alemão e italiano, além de conhecimentos suficientes para ler obras em latim, grego clássico, grego moderno, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindi, árabe e malaio, levou-o a aceitar a sugestão de um amigo para que prestasse o concurso do Itamaraty. E em 1934, segundo colocado no concurso, Guimarães Rosa abandona a Medicina para ingressar na carreira diplomática.

Em 1936, seu livro de poemas Magma é premiado pela Academia Brasileira de Letras, mas mesmo assim o escritor não publicou nem esse nem nenhum outro livro de poesia; apenas em 1998 o público conheceu Magma numa edição comemorativa.

Em 1961, Guimarães Rosa foi consagrado oficialmente, com o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. A consagração pelo público, entretanto, já estava solidificada, haja vista as inúmeras traduções de seus livros, publicados em vários países (Itália, Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Espanha, Suécia, Holanda República Tcheca, Eslováquia, Polônia). 

Em 1967, foi admitido na Academia Brasileira de Letras. No entanto, adiou a cerimônia de posse por quatro anos, justificando, em tom de brincadeira, que não agüentaria a emoção. Ironicamente, um enfarto o matou três dias após a solenidade. 

A obra

O início da carreira literária de Guimarães Rosa acontece oficialmente em 1946, com a publicação do livro de contos Sagarana, ao qual se sucederam a reportagem "Com o vaqueiro Mariano" em 1952 (incluída depois em Estas Estórias), o volume de novelasCorpo de Baile e o romance Grande Sertão: Veredas, em 1956; Primeiras Estórias, em 1962, Tutaméia (Terceiras Estórias), em 1967. Em 1969, após a morte do escritor, foram publicados os contos de Estas Estórias, que ele vinha preparando antes de morrer. Em 1970, foram reunidos em Ave, Palavra textos de diversas naturezas (crônicas, discursos etc) escritos durante toda a sua vida.

O livro Corpo de Baile é publicado atualmente em três volumes independentes: Manuelzão e MiguilimNo Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão




Fonte: http://vestibular.uol.com.br

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